[o evangelho da guerra] - texto 5


Levi Nauter







Só pode escrever com objetividade sobre o protestantismo quem nunca o amou e nunca o odiou. RUBEM ALVES


Ainda lembro de quando, nos meus oito anos de idade, cantava a canção "eu sou um soldadinho de Cristo Jesus...". Mais que isso, também lembro, já na flor da juventude, de outra canção: o nosso General. Ela dizia mais ou menos assim:

Pelo Senhor marchamos, sim
Seu exército poderoso é
Sua glória será vista em toda Terra
(...)
O nosso general é Cristo...

Eu fazia o maior sucesso tocando bateria, às vezes cantando; noutras, ao violão e na voz. Domingo, 15 horas, o sol pegando, eu suando e o povo, na grande maioria jovem, pulando. Minha bateria era um caco, mas isso pouco importava. O fervor e a raiva do inimigo eram a tônica.
Há alguns dias, o televangelista Pat Robertson também fez um discurso de guerra. Disse que Hugo Chaves, opositor ferrenho do império norte-americano e quiçá da democracia, deveria ser morto. Talvez Mário Quintana, se estivesse vivo, reafirmaria que esse também é um jeito estranho de amar o próximo. Eu prefiro dizer que esse é um jeito estranho e feio de ser cristão.
Esses dias fomos, eu e a Lu, comprar alguns alimentos para o café da tarde e resolvemos esticar, dando uma volta até o final do bairro onde atualmente moramos, um lugar pobre. Não se pode dizer que nossa casa fica em um lugar nobre, longe disso. Mas na medida em que vamos avançando para o final do bairro cada vez mais se vê o barro, a miséria. Pois lá também encontramos um anúncio da guerra. Passamos na frente da Igreja Evangélica Pentecostal Soldados de Jesus. Olhei mais de uma vez para me certificar de que não era sonho. Claro que até chegar nessa denominação passei por pelo menos uma meia dúzia dessas, digamos, top of mind. Dentre elas, uma cujo subtítulo é mais importante que o próprio nome da denominação: show da fé. Nunca imaginei que algum dia a fé carecesse de se mostrar assim tão ferrenha, em horário nobre, em rede nacional.
Um conhecido meu se identificou como sendo um participante da tropa do exército celestial (não disse se era a de choque). Eu mesmo, nos meus ansiosos dezoito anos, época de quartel, de militarismo, de ‘servir à pátria’, passei uma semana fazendo testes num batalhão da região metropolitana de Porto Alegre. Foi horrível, nem gosto de lembrar!

Há um discurso
[2] de guerra no ar. Um falar que não parece querer compartilhar o evangelho, senão empurrar, à força, uma visão de mundo grandemente equivocada e desrespeitosa para com o ser humano. Esse discurso interessa nessa reflexão. A base está em metáforas não palpáveis, que depende de crenças. Para a internalização, utiliza-se a teologia do medo[3].
Enquanto estudava sobre a língua e a literatura brasileira
[4], tive aulas com um excelente professor-doutor que também era teólogo. Foi um período pequeno, porém de grande aprendizado. A cadeira de semântica me traz boas lembranças. Sobretudo, lembro-me quando, num sábado inteiro, refletíamos sobre o discurso da guerra impregnado na nossa língua. Estávamos lendo, discutindo e retomando as idéias e as pesquisas de Lakoff e Johson . Os autores defendem que pensamos e agimos a partir de conceitos internalizados. Ou seja, “o que experienciamos e o que fazemos todos os dias são uma questão de metáfora” (p. 46). A nossa linguagem é reveladora, não há como negar. Através dela evidenciamos nosso sistema conceitual. Ocorre que a nossa maneira de pensar e agir é – por assim dizermos – abstrata, metafórica, não palpável. Quando nos utilizamos da linguagem, inconscientemente intuímos tornar a cosmovisão visível, palpável; isso, em termos lingüísticos, só é possível metaforicamente. Portanto, “a essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra” (p. 47-48).
Os mesmos autores, ao trazerem exemplos de metáforas cotidianas, falam da discussão como guerra, na qual

Vemos as pessoas com quem discutimos como um adversário. Atacamos suas posições e defendemos as nossas. Ganhamos e perdemos terreno. Planejamos e usamos estratégias. Se achamos uma posição indefensável, podemos abandoná-la e colocar-nos numa linha de ataque. Muitas das coisas que fazemos numa discussão são parcialmente estruturadas pelo conceito de guerra.
(LAKOFF, JOHSON: 2002, 47)

Frases como “seus argumentos são indefensáveis”, “ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação”, “jamais ganhei uma discussão com ele”, entre outras, ilustram essa ideologia que estamos acriticamente assimilando e propagando nos templos, bem como nas nossas falas cotidianas. Em muitos casos, o discurso bélico está de tal forma impregnado que não nos damos conta.

O discurso da guerra me incomoda. Não creio nele, não o quero.
E nada tem a ver com as pessoas que optaram, voluntariamente ou não, pelo militarismo. Em tempos de crise, a carreira militar pode ser uma boa opção. Tenho grandes amigos militares, dois em especial: o sargento Cleber, do Rio de Janeiro, e o Tenente Laerte, de Canoas. Eles, além de bons músicos, ajudaram-me a retirar alguns preconceitos – frutos possivelmente da falta de contato e de informação. Quando vejo um militar fardado ou quando assisto a filmes fico intrigado. Considero as roupas arcaicas, muito justas, pouco confortáveis. Também acho estranho passar no gueto militar, aquelas casas todas iguais, com soldados fortemente armados na frente e nos fundos. Aliás, o fardamento torna todos iguais. Mas é apenas aparência de igualdade. Provavelmente, alguém familiarizado note a diferença que a mim, de fora, é imperceptível, não obstante os filmes mostrarem homens (aqui esse gênero também constitui a maioria) sendo condecorados com medalhas, isto é, sendo diferenciados. O problema não está exatamente nisso que poderíamos chamar de perfumaria. A questão está na (1) aparência de igualdade, (2) na obediência inquestionável, (3) na idéia de poder e controle absolutos, (4) no conjunto de formalidades a serem seguidas e (5) na pretensão salvífica.
Incomoda-me o discurso bélico porque não vejo nele o evangelho de Cristo. Quando olho para as Escrituras e vejo Aquele a quem devo imitar
[5], vejo-o como o Príncipe da Paz[6]. Observo um Deus muito mais interessado nos doentes, nos pobres. Um Deus muito mais envolvido com as coisas típicas da humanidade: miséria, fome, festa, fartura, sonegação, negociatas, prostituição, choro, perdas.
O serviço militar objetiva defender o país de um ataque inimigo, defender suas fronteiras. “A segurança do Brasil em nossas mãos” é o slogan do Ministério da Defesa. O objetivo parece ser deixar-nos seguros, confiantes, sabendo que nada nem ninguém poderão nos tocar. Toda a estratégia e a ação bélica estão impreterivelmente sob a lei. Pois, eu não vivo o evangelho da lei. A lei contém erros, pretende ser regra e, portanto, gessa as ações, mortifica a liberdade. Quando alguém infringe a lei precisa ser punido com a mesma severidade constante da lei. Ocorre que quando o militar é o infringidor o julgamento é diferente de quando é um civil. Nesse sentido, a lei é desigual.
Quando uma situação fica como que fora de controle, chamam-se as forças armadas. Sabe-se, então, que a coisa ficou difícil. Quando vemos ou ouvimos que o Exército, por exemplo, assumiu o comando, sabemos, de antemão, que a ordem – ainda que indireta – pode ser atirar, matar. Um conhecido meu, referindo-se ao treinamento de tiro que recebe na Aeronáutica, disse-me: “sou treinado para atirar e acertar, não importa quem esteja na frente”. Parece que no evangelho da guerra ou você é aliado ou tem de morrer.
Acima, enumerei cinco questões que me incomodam no militarismo. Minha tentativa será fazer uma relação entre o discurso da guerra e o discurso bélico-religioso. Este tem sido comum no pentecostalismo e no neopentecostalismo, e as idéias, penso, advêm do norte (EUA). O norte tem sido rico em mandar-nos teorias pseudoteológicas baseadas em receitas, num suposto agir local de Deus. Lembro-me de uma triste época em que vivi tonto de tanto ler autores cujo objetivo é mostrar-nos muito mais a guerra do que Aquele que já venceu a morte
[7]. Rebecca Brown[8], para ficar num exemplo, fez-me ‘doar’ todos os meus CDs não-cristãos, além de não mais olhar a MTV. Ainda bem, depois, de um tempo - como diriam os guerreiros – tive uma nova revelação que, para meu alívio, trouxe de volta os maravilhosos Chico Buarque, Caetano, Paula Toller, entre outros nomes da música brasileira. Quanto a MTV, a programação ficou tão ruim que automaticamente parei de sintonizar o canal.
Deixo claro, a fim de evitar aqueles contrapontos simplórios citando Gálatas 5.17 ou Ef 6.11-12, que creio no mundo espiritual. Contudo, não como se vem observando, quer dizer, romanceadamente a la Peretti, Lahaye & Jenkins
[9]. Tampouco creio na neurose pós-moderna das tomadas: tomar posse da benção, tomar posse da vitória, tomar a cidade tal. Muito menos acredito no ‘mapa astral’ das cidades, ou seja, na crença de que é necessário perder tempo tentando descobrir quem morou num determinado local (o que fazia? Era batuqueiro?...). Toda essa parafernália leva o crente a uma neurose, no sentido psicanalítico dado por Tournier: uma angústia, cujo “esforço que se faz para escapar dela é o que acaba provocando-a” (p. 19). Talvez essa seja a razão de vermos tanta gente preocupada em denominar sensações. Tenho um conhecido que diz saber o nome de muitos demônios. Pobreza? Zé Pilintra. Sensualidade? Pomba-gira. A própria Rebecca Brown, que citei acima, tem livro-receita de como orar por problemas específicos. Uma afronta a Deus. E tem mais, igrejas modernas – provavelmente porque descobriram que o Diabo, conforme a Bíblia[10], é o pai da mentira – decidiram abolir nomes complexos e resolveram torná-los, digamos, ‘farinha do mesmo saco’. Tomamos conhecimento dos encostos. Desemprego, brigas familiares, baixos salários, dores de cabeça, tentações (em qualquer área) e mais um montão de problemas que não lembramos? Fácil, seu bobo, você tem um em-cos-to. Você não pode fazer nada, eles são invisíveis, astutos, experientes. Venha pra cá! E tome rituais em nós mortais.
Agora é que posso retomar as cinco questões que ainda estão pendentes. Vamos lá.

Aparência de igualdade
Todo o fardamento militar dá uma aparência de igualdade. Os trejeitos são semelhantes. As diferenças devem ser silenciadas. No discurso evangélico da guerra as palavras são como que mágicas: encosto, perturbação espiritual, bloqueio mental, maldição hereditária ou simplesmente maldição. A oração é ritualística e, na maioria das vezes, Deus pode até se sentir acuado de tanto que tentam mandar nEle. O cristão não pode duvidar nem dizer que não sente uma dita cura. O problema será só dele. Não foi curado? Não teve fé. Um dia ouvindo uma rádio de grande audiência evangélica, um ouvinte tentou dizer que, mesmo após a oração para a cura, não se sentia curado, o locutor-pregador-curador respondeu: “minha irmã, tome posse, acredite”. Faltou o “te f...”

Obediência inquestionável
Basta um pouco de atenção para se notar uma pretensa autoridade dos ‘guerreiros’ de Deus. Eles impõem uma pseudoautoridade a si próprios através do discurso que, muitas vezes, sufoca o outro (o ouvinte, o fiel, o leitor, o telespectador). E uma das formas mais evidentes para isso está na ênfase do EU – embora não fique só nisso. A título de exemplo, posso citar os televangelistas no papel de vendedores: “esses livros são revelações que Deus me [eu subentendido] deu”, ou “esse material, se fosse vendido ao preço normal, custaria tanto, mas EU estou fazendo por tanto”. O afã pela autoridade suprema está em outras frases: “eu declaro...”, “eu quero te abençoar”, “eu quero orar por quebra de maldição” etc.
O eu é tão necessário no discurso bélico que os pregadores e/ou líderes falam como se nunca errassem, como se fossem infalíveis, como se tivessem absoluto domínio sobre todas as forças do bem e do mal. É como se tivessem arrancado a chaves da morte das mãos de Cristo
[11]. É como se fossem santos, super santos. Aí, tal como os superiores militares, exigem continências, exigem preferencialmente o “sim, senhor” e tascam, sem nenhum pudor textos bíblicos para ratificarem o reinado sobre os fiéis[12], esquecendo-se do que está grafado em 2Co 13.10, aliás, o capítulo do amor, que não compartilha com o eu mas com o nós. Acho providencial encerrar esse tópico com a palavra do pastor Ken Blue (p. 16 – ver bibliografia):
...os abusadores eclesiásticos de nossos dias, autoritários e narcisistas, sáo os equivalentes modernos dos fariseus a quem Jesus repreendeu. Jesus não apenas expôs e denunciou os fariseus como falsos pastores, como também se ofereceu como advogado para suas vítimas. (...) Jesus não se conformou com o abuso espiritual – ele o enfrentou. Ele exigiu mudanças. Por que deveríamos nós deixar por menos?

Idéia de poder e controle absolutos
No tópico acima disse quase tudo. O que me resta? Apenas ratificar que, tal como no militarismo, a idéia é o controle, o poder. Lembro-me do dia em que um senhor me disse – com cara de felicidade fundamentalista: “agora nossa igreja vai pra frente, o irmão fulano domina o pecado”. Uma fala típica de fundamentalistas que amam a opressão – espero, sinceramente, que seja sem saber.
Pois, com os guerreiros de Deus não é diferente. Eles procuram deixar claro, de alguma forma, o quanto sabem a respeito de assuntos espirituais, da metafísica ‘gospel’. Quando os ouvimos num sermão a sensação que temos é a de que eles não mais pecam. Estão noutro patamar. Raramente colocam o nós no sermão, a satisfação deles está em confrontar: “como está sua vida diante de Deus”, em vez de ‘como estão nossas vidas’. São adeptos do receituário, das listas dos problemas e soluções, das orações pré-prontas, das hierarquias de pecados. Parecem terem descoberto a roda. Para eles – além da Bíblia, na qual Jesus curava cegos sem receitas, basta dar uma pesquisada para se certificar – cito um trecho da música A utilidade das palavras, de Nei Lisboa
[13], grande compositor e músico gaúcho que, liberto da falácia música do mundo/música de outro mundo, posso ouvir e ler:

Vamos salvar os búfalos
E o pensamento também
Das idéias com reserva antecipada
Das certezas pré-gravadas
Vamos salvar o homem das risadas
E das legendas douradas da Sony (...)
Vamos salvar o pensamento
De alianças com carrascos

Conjunto de formalidades a serem seguidas e pretensão salvífica
Esses dois tópicos podem ser colocados em um, haja vista que não me parece normal ter-se um conjunto de regras, de formalidades a serem seguidas se não se tem uma pretensão, um motivo. E, no caso da igreja, a idéia, às vezes implícita, é a salvação.
Eu concordo plenamente que estamos aqui nesse mundo para cumprir o “ide” de Cristo
[14], que preciso ser sal e luz, não apenas dentro, mas, principalmente, fora das quatro paredes do templo. Mas não tenho pretensões salvíficas, no sentido de que não cabe a mim a tarefa de salvar. Quando penso que alguém está, será ou não deveria estar nem ser salvo estou julgando; não cabe a mim fazer tal julgamento. Digo isso porque é muito comum ouvir cristãos enchendo a boca e como que determinando ‘fulano morreu sem (ou com, dependendo do caso) salvação’. Normalmente esse tipo de julgamento está profundamente mergulhado na idéia do bem e do mal[15]. Ou seja, é do bem e, portanto, da salvação aquele que bem representa o discurso dominante; é do mal e, portanto, da perdição (fogo eterno, inferno, entre outros [pseudo]sinônimos) aquele que, nalgum momento, transgrediu, discordou ou, na clássica fala, rebelou-se.
As formalidades do evangelho da guerra têm a finalidade de, na medida do possível, fazer unificar os discursos e as práticas da membresia. Tal unificação se bifurca: de um lado fala/ação visando ganhar-se status perante a comunidade local na qual o templo está inserido; de outro, fala/ação de modo a perpetuar a hierarquia liderança e liderado. Os sermões, as palestras, as pregações (pouco importa o nome que se dê) contêm uma ideologia e, em conseqüência, uma nomenclatura de uniformização embasada tanto na Bíblia quanto numa suposta literatura, digamos, de referência. Exemplifico lembrando que quando um adepto do belicismo quer contestar quem diz que está difícil este mundo fala “nossa luta não é contra a carne”
[16]; também lembro dos que tanto leram Rebecca Brown que só pensam em “brecha”. Alguma coisa não está bem? Veja se não há alguma brecha! E para confirmar o afirmado acima, a saber, que todo o discurso baseia-se na lei, reescrevo o diálogo que acabei de escrever – a título de ilustração: Alguma coisa não está bem? Veja se não há alguma brecha dando alguma base legal para o inimigo! As palavras de ordem, resumindo, são, entre outras: brecha, autoridade espiritual, domínio, perturbação, bloqueio etc.
O discurso da guerra com a finalidade de perpetuar a hierarquia simplesmente é um diálogo exatamente como estou fazendo nesse texto, propositalmente, isto é, vai sendo repetitivo com vagar. Quando nos damos conta, estamos assimilando o mesmo discurso devido à insistência em nosso ouvido. É dessa forma que vemos alguns fiéis (e esses merecem o título) repetindo acriticamente palavras ou frases como “tá amarrado”, “brecha”, “maldição”, “inimigo” etc. Nessa linha, vêm discursos que vão internalizando a obediência cega. Quem não usa seus talentos, quem não atende à solicitação do líder, quem opta por ficar ‘no banco’ torna-se o rebelde. Ainda na esteira da rebeldia, a liderança dá um jeito de criar nomes para (pseudo) espíritos: espírito de rebeldia, espírito de divisão, espírito de pobreza.
A fala/discurso que visa o status tem a ver com o crescimento da denominação ou do templo na comunidade em que está inserida. Para isso, lança-se mão do outrar (tornar-se o outro, empatia). Pouco nos damos conta, no entanto, de que outramos quem conhecemos. Por isso as igrejas estão ‘crescendo’, i.e., têm uma aparência de crescimento: nela estão os filhos, dos filhos, dos filhos do irmão fulano de tal. Perpetua-se a hierarquia familiar. E cada qual, na medida em que se torna institucionalizado, vai, ao mesmo tempo, com raríssimas exceções, tornando-se inútil para a sociedade secular – e como boa desculpa cita o Salmo 1. Mas a política continua sendo, por assim dizermos, a da boa vizinhança (usa-se uma indumentária igual a dos vizinhos, sente-se as mesmas necessidades, porém, considera-se superior e de outro mundo). Ocorre que as boas obras poderão cativar (discurso de guerra antiga) o vizinho.
A fala/discurso para com os fiéis, para manter a hierarquia, é o discurso do medo (do tipo “tomem jeito, Cristo está voltando”) ou o do impressionismo. Em relação ao do medo, temos as Rebeccas da vida, as apocalípticas em plena contradição com o pedido de Cristo em João 14.1-3, 27. Mais que a teoria do medo, a hierarquia vai sendo demonstrada com um outro discurso, o da superioridade do líder. Líderes são, nessa perspectiva, valentes, não têm medo de nada. E escrevem livros instruindo. Fui visitar um casal que gosta de ler o que eles chamam de “literatura evangélica”. Ao bisbilhotar a biblioteca encontrei duas obras que ilustram o que estou tentando dizer. São dois exemplos do discurso da guerra. O primeiro é a apresentação do livro Encouraçados para a guerra
[17]. Leiamos:
O objetivo deste livro é instruir os servos de Deus a conhecer as ferramentas que Satanás usa, a identificar o campo de guerra e o campo de batalha, aprender a desenvolver suas armas espirituais e a se fortalecer como soldado de Cristo. Após ler, e colocar em prática, você nunca ira desistir ou deixar alguém desistir da fé em Jesus Cristo.
Esse é o típico discurso da guerra, um evangelho que quer meter medo nas pessoas, quer que elas decorem fórmulas, regras e têm pretensões salvíficas. O que mais me chama a atenção é que o foco – pelo menos no que está escrito – não é Cristo, mas, sim, o poder do mal. Usa-se o mal para atrair adeptos para o bem. Que estranho, eu prefiro Cristo porque Ele é Deus, é Soberano, é Maravilhoso é Tudo. Com todo o respeito, pra mim, o Diabo que se dane. Pouco me importa o que ele faça, eu quero é Deus (não só a musiquinha).
A outra obra que de uma olhadela foi Preparado para a batalha: o caráter, as armas e as estratégias do guerreiro espiritual
[18]. Leia alguns trechos do prefácio intitulado ‘Aproveite a oportunidade’, páginas 9-10:
“(...) Uma batalha se levanta nas almas e mentes de homens e mulheres. Clarins desta batalha chamam para o combate. Convocam os crentes individualmente e também a Igreja cristã a lutar desesperadamente, criar estratégias, organizar-se e, finalmente, mobilizar-se para conquistar indivíduos, comunidades e nações para Cristo. (...) Preparado para a batalha é um livro que identifica, descreve e instrui os crentes em quatro áreas básicas da guerra espiritual: (1) a natureza da batalha, (2) o caráter do soldado, (3) as armas do soldado e (4) a estratégia para a batalha. (...) Será que os cristãos do Ocidente despertarão de sua sonolência, vestirão a armadura de Deus e marcharão para a batalha? ...Acordemos! A batalha está começando!”
Oh evangelho do medo! Dele quero distância. “Será o medo o início da religião?”, uno-me ao questionamento e à reflexão do ex-pastor, teólogo, psicanalista, professor e educador Rubem Alves (Alves, 2004: 18), “a teologia cristã tradicional é um pião enorme que gira sobre essa aguda ponta de ferro chamada inferno”.
Prefiro o real evangelho de Cristo, que não dicotomiza este mundo com o vindouro, ou seja, enquanto estou aqui devo trazer a luz, ser sal, fazer daqui um pedaço do céu. Ao mesmo tempo, quero um evangelho que incentive a leitura de obras cristãs e não-cristãs, porque acredito piamente que Deus pode e usa as duas. Busco um evangelho menos empreendedorístico, menos empresa, que não me obrigue a ‘vestir a camiseta’ denominacional nem me obrigue a pertencer a um departamento/ministério. Meu ministério é viver e, com minha vida, evangelizar. Amar as pessoas sabendo que elas podem errar e são, potencialmente, más devido ao pecado. Minha missão, árdua, é passar pelas fases de filho pródigo a filho mais velho e, por fim, ser como um pai – capaz de doar-me
[19].
O evangelho da guerra, a teologia/teoria do medo, o discurso bélico são variações sobre um mesmo tema: colocar, aos poucos, o medo nas pessoas ao invés de falar sobre o amor de Cristo e o que deveria ser o amor cristão. A suposta salvação está em que obedecendo às regras e apreendendo o discurso o céu está quase garantido. Assim, perpetua-se o poder e a institucionalização. Talvez tenhamos que fazer a difícil regressão proposta por Jesus em Mt 18.2-5; 19.13-14 – bem como o registro em Jo 16.21. Rubem Alves (Alves, 2004: 53) dá um porquê justificável para essa regressão: “...as criancinhas ainda não experimentaram o fascínio diabólico do poder pelo poder e participam ainda da bem-aventurança paradisíaca em que o poder só tem sentido se produzir objetos de prazer.”
A criança é sempre um presente de Deus, e é a ela que devemos olhar para entender um pouco sobre a vida. Ela nos faz mudar atitudes
[20]. Não pensa na guerra. Acho que está mais para uma teologia da alegria.




BIBLIOGRAFIA

LAKOFF, George; JOHSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas e São Paulo: Mercado das Letras e Educ, 2002.
ALVES, Rubem. Se eu pudesse viver minha vida novamente. 6.ed. Campinas-SP: Verus, 2004.
____________. Religião e repressão. São Paulo: Teológica e Edições Loyola, 2005.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 6.ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 10.ed. São Paulo: Cortez, 2005.
TOURNIER, Paul. Mitos e neroses: desarmonia da vida moderna. São Paulo: ABU Editora; Viçosa: Ultimato, 2002.


PEQUENA AMOSTRA DO EVANGELHO DA GUERRA [tive que limitar devido o grande volume disponível no mercado]
Ataque a Nova York, de Márcio Nogueira, D’Sena Editora;
Vencendo as guerras invisíveis, de Marco Antonio Peixoto, Editora Vida;
O homem espiritual, de Watchman Nee, Editora Betânia – volume 1, 2 e 3;
Laços da Nova Era, de Marco André, Editora Betânia;
A divina revelação do céu, de Mary K. Baxter, editora Danprewan;
A divina revelação do inferno, de Mary K. Baxter, editora Danprewan;
A batalha final, de Rick Joyner, editora Danprewan;
A visão profética para o Século 21, de Rick Joyner, editora Danprewan;
Símbolos da Nova Era, de S.V. Milton, A.D. Santos Editora;
Como investigar crimes com a ajuda divina, de Daniel Gomes, CPAD;
Este mundo: lugar de lazer ou campo de batalha?, de A.W. Tozer, Danprewan;
Maldição ou benção, de Vanderlei Miranda, Editora Profetizando Vida;
Oração de guerra, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Escudo de oração, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Derrubando as fortalezas em sua cidade, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Igrejas que oram, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Espíritos territoriais, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Porcos na sala, de Frank e Ida Mae Hammond, editora Bompastor;
Cristo nos resgata de toda maldição, de Neuza Itioka, editora Sepal;
Deus quer a sua cidade, de Neuza Itioka, editora Sepal;
Possuindo as portas do inimigo, de Cindy Jacobs, editora Atos;
A luta, de John White, Editora Cultura Cristã – ECC.






NOTAS
[1] Também postado no blog ANOTAÇÕES SOBRE UM CRISTIANISMO: www.anotacoessobreumcristianismo.blogspot.com
[2] Empreguei a palavra discurso na tentativa de chegar perto da definição dada por ORLANDI (ver bibliografia). Ou seja, “o discurso não é um conjunto de texto, é uma prática” (p. 55) que “se dá no interior de formações ideológicas” (p. 69) manifestado nos compartilhamentos entre as pessoas – de forma oral ou escrita. E, por fim, Orlandi encerra dizendo: “a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada (isto é, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada) determina o que pode e deve ser dito” (p. 58). Discurso também deve ser entendido na perspectiva da interação nas relações interpessoais, isto é, a pessoa com quem falamos deverá ter algum tipo de conhecimento da cosmovisão para melhor poder participar de eventuais discussões (Koch e Travaglia, ver bibliografia).
[3] Teologia do Medo é um termo que venho utilizando para referir-me a termos que amedrontam as pessoas. Um exemplo disso pode ser o que comumente fazem com os músicos: “você não está tocando/cantando? Deus vai cobrar de ti”. Há muito mais a ser abordado noutro artigo.
[4] Sou licenciado em Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA.
[5] 1Co 11.1; Ef 5.1.
[6] Is 9.6.
[7] At 2.24; 2Tm 1.10; Hb 2.14-15.
[8] A autora escreveu Ele veio para libertar os cativos, Prepare-se para a guerra, Vaso para honra, entre outras. Prepare-se..., livro que possuo, foi publicado pela Danprewan Editora e Comunicação Evangélica Ltda.
[9] Peretti é o autor de Este mundo tenebroso, os outros são os autores da série Deixados para trás – editora Vida e United Press, respectivamente. Citei-os porque tais autores escreveram ficções, portanto, ficção não deve, em nenhuma hipótese, ser tomado como efetiva realidade. É romance.
[10] Jo 8.44.
[11] Ap 1.18
[12] Rm 13.1-3. Mesmo que veladamente, surgem ‘brechas’ para os preconceitos de gênero a partir de 1Co 7.4. Nessa esteira, parece-me, também vem a desculpa para que alguns seja apolíticos: 1Tm 2.1-2; Tt 3.1-2. Não poderia ficar de fora o clássico 1Pe 2.13-19.
[13] Do CD Cena beatnik, Nei Lisboa, Acit, 2001.
[14] Mc 16.15-16.
[15] Sugiro a leitura do interessante, e não menos engajado, Eduardo Galeano, especialmente a obra O teatro do bem e do mal, volume 293 da Coleção L&PM Pocket, de 2006. o autor faz uma análise dessa palhaçada norte-americana, pseudocristã a fim de ‘salvar’o mundo do mal. Quem será o mal nessa história?
[16] Também lembro do grande Caio Fábio, em A crise de ser e de ter, da Vinde, 1995. Ele diz que os ‘guerreiros’ não conseguem lutar em duas frentes “ao mesmo tempo: no mundo invisível e no mundo visível; no mundo espiritual e na sociedade humana. Nesse tipo de movimento de guerra espiritual amarram-se todos os demônios lá nas regiões celestes, mas esquecem-se de que os demônios humanos continuam soltos aqui.” (p. 23)
[17] O autor se identifica como Pr. Dr. Carlos Roberto Braço Forte David (em seu folder de apresentação, porque no livro é Carlos Roberto David). A obra foi publicada pela Editora Hosana, São Paulo, em 2001. Em 2007 sairá o volume 2. www.boaterra.com.br
[18] De Sammy Tippit, publicado pela JUERP (Rio de Janeiro, 1995), traduzido por Welton Kelly Barbosa Lima.
[19] Sobre essa temática indico o maravilhoso livro A volta do filho pródigo, de Henri Nouwen, Edições Paulinas.
[20] Uma boa e divertida reflexão sobre pode ser vista no filme Durval Discos. A trilha sonora é ótima.

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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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