[o desenho de um pai] – texto 15



Levi Nauter



- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. (...) Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. (...) E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande. (Graciliano Ramos)





O que prende mais a nossa atenção é o sentimento de culpa que todo homem experimenta, não pelo mal que fez, mas pelo bem que deixou de fazer.


A vida sempre traz conflitos, fundamenta-se no conflito, mesmo no caso da mais humilde célula que só subsiste defendendo-se constantemente contra o meio ambiente.
(Paul Tournier)










Falar de pai sempre foi para mim uma tarefa difícil. Somente agora, com a idade de Cristo, me é possível fazer uma reflexão. Mais que isso, a possibilidade está intimamente ligada ao meu desejo de também ser um pai. Sei dos riscos dessa empreitada, haja vista não existir um manual de boas práticas para essa nobre e linda 'tarefa'. Opto, contudo, por correr o risco. E o faço em função de duas razões: (1) porque nunca gostei da mesmice, o risco deixa a vida mais interessante e (2) porque tenho um pai - digamos - carnal, um pai celestial, um desejo de fazer parte desse rol, além de, na minha profissão, conviver com alguns pais.

O PAI TERREAL




Minhas lembranças paternas guardam um misto de alegria, tristeza e esperança. Essa tríade possivelmente acompanhar-me-á até minha velhice, quando, então, sob outra ótica, observarei minha atuação, meu desempenho, minha entrega ou falta dela ao longos dos irrecuperáveis anos. Equivale dizer que não se pode negar o passado; ao contrário, precisamos encará-lo de frente, de trás, pelos lados, por cima e por baixo. Assim é que se criará a possibilidade da mudança possível e/ou mudança necessária. Negar o passado é dizer sim à falácia, viver uma superficialidade disfarçada de profundidade.
Minha alegria tem a ver com saber-me filho de alguém. Saber quem é meu pai, como é seu rosto, qual o seu nome, a sua profissão. Lembro-me do seu colo na infância, um colo forte, aconchegante. Sentia-me bem protegido. A profissão de meu pai dava-lhe a condição de ter braços fortes, sua autoridade dentro de casa parecia-me incontestável. Na época escolar, quando algum coleguinha me ameaçava, ele prontamente resolvia o problema e o que me causava medo logo era dissipado. Na juventude ouvi alguns de seus conselhos - a rebeldia impediu-me de concordar com outros. Era sempre bom poder contar das minhas conquistas, o que fazia no colégio, no trabalho, na igreja.
Porém, ao lado dessa alegria, por vezes caminhava a tristeza. Isso porque nossos momentos de diálogo profundo foram poucos. Raramente conversávamos sobre nossos sentimentos. Os assuntos giravam, digamos, em torno de superficialidades e (pseudo)certezas. "Como foi o dia?", "obedeceste a mãe?", "fizeste os deveres de casa?". Havia momentos em que meu coração, por uma razão ou outra, parecia apertado. Tinha que arranjar um jeito solitário para o desaperto. Noutros momentos a razão do aperto era o próprio pai, a mãe havia prometido contar minhas traquinagens ao chefe da família. Enquanto eu não deitava na cama a fim de dormir para acordar no dia seguinte, meu coração quase saía pela boca. Nem sempre escapava ileso. Trinta e três anos depois, ainda pareço sentir a dor das surras que levei, muitas delas por motivos fúteis.
Também senti tristeza por ver um interesse muito maior em ausentar-se de casa do que uma alegria em estar com os filhos e as filhas. A igreja, o templo, a "obra de Deus" eram as culpadas, ou as desculpas. Tivemos tão poucos momentos de lazer com os pais que tenho de fazer esforço para lembrá-los. Os desfiles em comemoração ao sete de setembro são quase as únicas lembranças. No dia 7 acordava às seis da manhã para não perder de passear. O passeio consistia em ficar das sete às treze horas olhando a parada militar. Ficava com fome, mas agüentava quieto para poder garantir o passeio do ano seguinte. Fui herói, só hoje noto.
Não poderia deixar passar em branco a imagem que me abalava: um homem inexorável, impenetrável, infalível. Nunca o via chorar, era sempre forte, tudo sabia; mandava e desmandava. Que pena e que triste deve ser para alguém não poder ser humano, demonstrar que é frágil, que precisa de abraço, de aconchego tanto quanto uma criança. Que sem graça deve ser a vida sem a possibilidade do erro, do arrependimento, do perdão, do recomeço, da criatividade. Quão desumana deve ser a vida que nos exige perfeição. Que injusto terá sido Deus que nos exige perfeição colocando-nos num mundo de imperfeições.
Cresci, cortei o cordão umbilical, casei. Vivo na esperança.
Alimento uma esperança infindável na possibilidade de mudança. Imagino que todos os seres humanos são passíveis de erro e, sobretudo, da mudança de foco. Ou seja, acredito que arestas podem ser aparadas e um bom diálogo pode fluir a partir daí.


O PAI DE PRIMEIRA VIAGEM




Os meus sonhos com a paternidade não estão imunes à tríade. Compartilho com a Lu da imensa alegria de planejarmos um filho ou uma filha. Até sugestão de nomes temos. Na nova casa que estamos construindo, há um lugar especial para ela ou para ela. Dele, imaginamos uma pequenina criança saindo e batendo na nossa porta chamando-nos de pai ou mãe. Às vezes, enquanto estou dirigindo o automóvel, digo pra Lu: "ah, se tivéssemos um 'bichinho' aqui no banco de trás". A emoção toma conta!
Quando penso num filho ou numa filha imagino sua fisionomia, seus olhos (serão castanhos como os meus ou verdes como os dela?), o corpo, a voz, os diferentes tipos de choro, o cheiro, as manias, as manhas, as vontades, os desejos. Que histórias vou contar? Que músicas cantarei? Com o que vou me preocupar? O que, como e por que ensinar? Como fazer acordos? Em que momento discordar? Todas essas perguntas consideramos importantes; todavia, mais importante ainda é termos esse pequeno ser. Ele certamente será um presente de Deus nas nossas vidas. Com ele certamente muito mais aprenderemos do que ensinaremos.
Em face do que disse, poderia haver lugar para alguma tristeza? Ora, nossa única tristeza, se é que podemos assim nos referir, tem a ver com o mundo do trabalho. Seria muito bom se as condições financeiras permitissem-nos tê-lo antes. No entanto, não é assim. Só agora é possível realizar o sonho. De outra parte, a tal tristeza é logo superada pelo entendimento de que esse é o melhor momento para vivermos o que estamos vivendo.
As esperanças, portanto, são muito maiores.
Que esperanças? O que posso esperar na convivência com um filho ou uma filha? Na verdade minhas esperanças estão embrenhadas na minha cosmovisão. Ao explicitar minha visão de mundo, trago 'casado' aquilo que espero, que sonho. Meu esforço será dizer mais do sonho/esperança e deixar nas entrelinhas minha cosmovisão.
A maior esperança que carrego é o desejo de ser amado por meu filho ou filha. Tudo que disse até aqui, as emoções que me tomam ao falar de um vindouro filho é uma espécie de preparação para a sua chegada. Se minha imaginação corre mundos e mundos de sonhos, tem tudo a ver com a criança que fará parte da minha vida. Seria difícil saber-me não amado pelo meu filho.
Ser um parceiro na caminhada da vida de meu filho ou filha é outra esperança que acalento. Quero que ele ou ela possa contar comigo incondicionalmente, em todas as etapas da vida ou, como diz a Dra. Karin Wondracek, em todas as 'estações' da vida. Assim, quero mostrar-lhe o mar, o barulho das ondas, a gostosura de caminhar na beira da praia. Ao mesmo tempo, o perigo do mar, o risco que se corre ao sair de perto dos salva-vidas. Na primavera, quero - com ele ou ela - apreciar as flores, suas tipologias, os cheiros; a estética é um presente de Deus. Mostrar-lhe as folhas caindo, o vento as carregando e o burburinho que faz, será outro desafio no outono. A beleza da Serra, de um bom café, um bom livro, a culinária, as artes em geral, mas também o silêncio, a quietude, os temporais os relâmpagos, as chuvas. Ah, inverno da vida. Que desafios me aguardam! Estou ansioso por eles. Quero tanto ver e fazer parte da alegria de meu filho ou filha.
Não penso em ser o mestre infalível. Não me imagino com um livro de boas maneiras debaixo do braço, nem sonho com obras que tentam dizer como ficar rico, como ser profissional de sucesso, como ser um pitt bull. Caso ele ou ela opte por essas obras, tudo bem. Eles, espero, serão gente e farei de tudo para que vivam gentificados.
Penso em ensinar pelo exemplo, ensinar a fazer fazendo. Penso em pedir desculpa e perdão quando cometer erros. Penso em continuar coerente com meu discurso contra o machismo, contra os preconceitos de gênero e de opção sexual. Anseio disseminar nele ou nela a fé cristã que, com alegrias, tristezas e esperanças, venho cultivando - não obstante os ventos contrários. Mas uma fé cristã de mais prática que prédica, independente de denominação e/ou instituição eclesial. Uma fé com íntima relação divina porque com íntima relação humana.

O PAI CELESTIAL




Contrariando o que dizem alguns (que a relação com nosso pai carnal refletirá na relação com Deus), o meu relacionamento com Deus vem melhorando sobremaneira conforme me vou imaginando pai. Na medida em que tiro de mim as pretensas sabedorias, as doutrinas, os dogmas, vou chegando mais perto daquele que É. Por isso, no meu caso, a instituição demonstrou-se inútil, ineficaz. Sem ela é que venho compreendendo o sentido do relacionamento com Deus. Sinto a necessidade da companhia de outras pessoas, claro. Mas isso independe de um templo. O templo sou eu.
O Pai Celestial não me exige perfeição, se assim fosse não me criaria. Requer meu esforço e, ainda assim, concede-me o livre-arbítrio. Na passagem por esse Planeta, quer ver-me aproveitando da sua criação e quer ser adorado com a imensidão e a profundidade de todas as artes. Imagino que sua multiformidade exclua os rótulos, as nomenclaturas, as vãs doutrinas, o passa-tempo religioso. Possivelmente odeia o fundamentalismo. Um bom exemplo de pai é Deus que não poupou o próprio filho. Por outro lado, Cristo também é um bom exemplo de pai da fé, basta lermos os evangelhos.
A melhor notícia do pai celeste é que posso desabafar com ele todas as minhas alegrias, tristezas e esperanças. Suas misericórdias se renovam a cada manhã. Talvez esse seja o modelo a ser seguido, um amor acima de qualquer suspeita.
Em que pese a minha pecaminosidade, o Pai (com letra ‘bem’ maiúscula) me ama e tenho vivido cotidianamente esse amor. NEle não preciso ter medo de ser entregue por alguma estrepolia. Desconfio que Ele me acharia anormal se assim eu não fizesse. Se um filho meu não subir numa árvore, por exemplo, acho que estará faltando alguma coisa para ele ser considerado normal, gente. Também acho que esse mundo é o lugar no qual estou para duas consciências: (1) saber que vivo num processo de aperfeiçoamento para um mundo vindouro, cujo reflexo dele (2) tenho de esforçar-me para que comece por aqui. Isso significa, em outras palavras, que nesta Terra não há perfeições, há tentativas do melhor. O melhor está por vir. Preciso, portanto, aprender a partir do(s) erro(s). E o Pai sabe disso; Ele está no controle.
Só Deus, o melhor pai do mundo!
Obrigado Deus! Por tua graça estou vivo.




NOTAS NÃO MENOS IMPORTANTES

A ILUSTRAÇÃO deste texto foi retirada, com o todo o respeito, da bela novela de Drummond Amorim, Xixi na cama, publicada pela editora Dimensão, de Belo Horizonte, em 2006. Ainda bem, o livro está na segunda edição. O desenho de Robson Araújo.

A primeira citação foi retirada da página 10 da maravilhosa obra Vidas Secas, do maravilhoso Graciliano Ramos. Retirei da edição 83, publicada em 2001, pela Record. Na verdade fiquei na dúvida cruel entre essa obra ou um trecho de Infância. Esta ficará para uma próxima; a significação da outra, agora, pesou mais.

As duas outras citações são de um senhor com cara de carrancudo, mas que, no entanto, nos faz chorar com sua sensibilidade e sua minuciosa análise da alma humana. Ler sua obra tem sido a descoberta de que Deus tem muito para mim, apesar dos meus erros. Ele é autor, entre outras, das obras Culpa e Graça (editora ABU, 1985) e Mitos e Neuroses (editora Ultimato, 2002)

A Dra Karin H. K. Wondracek é a pessoa com quem venho aprendendo a ver a criação divina com mais graça e menos culpa. Com ela descobri que Deus tem o melhor pra mim em todos os sentidos. Duas obras, entre outras produções suas, destaco: Aprendendo a lidar com as crises, editora Sinodal, 2004 (em co-autoria com o Dr. Carlos Hernandez); e Caminhos da graça, editora Ultimato, 2006.

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Sobre este blog

Para pensar e refletir sobre o cotidiano de um cristianismo que transcende as quatro paredes de um templo.


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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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