[evangelho à força] - levi nauter


Levi Nauter





[evangelho tomado a força] – levi nauter

Encontros fraternos são como sementes. Neles a gente conversa longamente, toma água, chimarrão, café, pastelão, chá, refri, entre outras iguarias. O papo rola solto, despretensioso, desarmado. Ri-se, quase chora-se, conta-se as novidades ou 'velhidades', mas também pode não se falar nada. Um simples abraço fraterno diz tudo. Ocorre que a semente é meio assim: sem grandes pretensões. Porém, de repente, ela cai, brota e pode nascer uma flor ou, no dizer de Gilberto Gil1 (na belíssima Drão), “Morrenasce, trigo, vive morre, pão”.

Aquele bate-papo, aparentemente sem muita importância, vai gerando bifurcações em nosso interior. É como se ele criasse redes internas de assuntos que se checam e coadunam ou se dicotomizam. Foi um pouco do que aconteceu comigo. Obrigado Guto, Camila, Timóteo e Patrícia.


Num certo momento da nossa conversa surgiu um assunto do qual não me orgulho tanto quanto deveria, ou tanto quanto alguns o fazem. Nasci num berço cristão. O detalhe é que nasci num berço fundamentalista, pentecostal. Preferiria ter nascido num berço comum, menos fatalístico, menos repressor, menos desumano. Ter nascido num lar dito cristão, e ainda por cima fundamentalista, não me permitiu ser gente até uma certa data.

Apresentaram-me um Deus carrasco, estraga-prazer. Mostraram-me, na verdade, um escape do inferno. Meu maior desejo era fugir do inferno. Uma vez ouvi uma sermão na qual o preletor dizia “a mim basta ficar em qualquer cantinho, desde que eu esteja no céu”. Um céu assim mais parecerá um inferno.

Desde cedo aprendi o discurso igrejeiro. Ele me aprovava perante a liderança fundamentalista pentecostal. Sabia as palavras de ordem, tanto para cantar quanto para orar no microfone. Sabia quais músicas levavam o povo ao ‘delírio’, ao “céu”. Mas cansei de tudo. Como diria Rita Lee, “me cansei de lero, lero”. Abandonei uma denominação tida como detentora da verdade e do pioneirismo evangélico no Brasil. Fui para uma, digamos, mais light. Ledo engano, havia um legalismo velado, havia a discrepância discurso x prática tanto quanto em outra denominações. Desanimei. Hoje sou um cristão sem igreja. Sou um descongregado. As denominações, na perpetuação da Teologia do Medo, optam por chamar isso de desviado. Não me importo.


Disse isso porque as pessoas que não nasceram num berço fundamentalista não conseguem entender um Deus carrasco, um deus tipo câmera de reality show. Quem não vem desse mundo opressor não compreende a dificuldade que é mudar o conceito de Deus Justiceiro para o Deus Pai. O fundamentalismo conhece o Deus Pau, não o Pai.

Antes de continuar, convido você a ler um trecho da música de Chico Cesar e Vanessa da Mata2, chamada A força que nunca seca:

Já se pode ver ao longe

A senhora com a lata na cabeça

Equilibrando a lata vesga

Mais do que o corpo dita

O que faz o equilíbrio cego

A lata não mostra

O corpo que entorta

Pra lata ficar reta


É exatamente esse o exercício que um ex-fundamentalista faz cotidianamente. A fim de que tudo fique bem se faz uma força para ter esperança. Opta-se por um outro evangelho, um evangelho mais humano (não humanista como alguns gostam de taxar), de mais tete-a-tete com as pessoas. Um evangelho sem dados estatísticos, sem pirotecnias, sem julgamentos (embora com opinião). A lata reta significa estar vivendo (no gerúndio mesmo), lutando contra um evangelho midiático. A lata reta é a capacidade de servir a Cristo, mas em off, sem ninguém ver – a não ser Deus. A lata reta é ser sal e luz fora das quatro paredes igrejeiras; afinal, é fora que interessa.

Mas há algo que a lata não mostra. O corpo se entortando para equilibrá-la. É o evangelho velho querendo tomar o lugar do outro evangelho. O evangelho que se fixa num templo contradizendo o evangelho de Jesus que saía a visitar o submundo. O corpo se entorta para que o evangelho fique mais reto, mais digno, mais abundante. O corpo se entorta porque não há receitas; para viver aventuras com Deus não há script.

A poesia inicia com “se pode ver ao longe” porque esse evangelho não é popular, nem populesco apelativo de multidões. É um evangelho para poucos, para os que não precisam de alguém que os guie como se fossem cegos: vai pra cá, vai pra lá. É para poucos porque não possui ‘sete passos para...’. Não é popular porque Deus brinca de esconde-esconde: está na tempestade, na brisa suave, no ônibus, no trem, no frio aqui do Sul do Brasil. Ele também está na arte escrita, esconde-se por trás das palavras; na poesia de um Neruda; está no reflexo de um Picasso e todo-poderoso numa Tarsila do Amaral. Está na textura de um quadro. Está na sonoridade dos instrumentos musicais.

Se pode ver ao longe porque não tem redes de mídia. Se faz no atelier, na biblioteca, na mente do compositor, do poeta. Sobretudo, está naqueles a quem criou, com tanto afinco, à sua imagem e semelhança. Por isso um bate-papo é semente.

O Deus que eu sirvo é um Deus que se contextualiza e, por isso, agora, é pós-moderno. Por isso não quer guerra; respeita as diferenças e exige isso de mim. O Deus que eu sirvo alivia o fardo e torna o jugo suave. Um evangelho que não faz isso não me interessa. O evangelho que mostra mais o inferno que o céu é um evangelho desgraçado, nele não há Graça.

O Deus que eu sirvo me dá vida em abundância. Não quer que eu tenha medo do amanhã; não quer que eu me sinta acuado pelos medalhões de um evangelho torno, vesgo. Deu-me a oportunidade de conversar com muita gente e reter delas o que é bom.

Só esse evangelho me permite viver em novidade de vida. Dependo completamente de Deus. Ele é a minha força. O resto é o resto.



ILUSTRAÇÃO
Retrato de Pagu, por Di Cavalcanti.In ZATZ, Lia. Pagu. São Paulo Instituto Callis, 2005. Projeto gráfico de Camila Mesquita. Coleção ?A luta de cada um?. P.33.




1Caetano Veloso, no DVD Prenda Minha, interpreta de modo maravilhoso essa música.

2 A Vanessa pôs essa canção no seu primeiro CD. Com Chico Cesar é possível encontrar na coletânea Novo Millenium. As duas interpretações são ótimas, cada um com seu estilo pessoal, o que enriquece a arte.










3 comentários:

Nadie segunda-feira, junho 16, 2008 3:09:00 PM  

Olá, Levi! (isso soa bonito, não?) Cometi o doce atrevimento de colocar um link da tua página no nosso blogue! Escreves bem, isto é, escreves-te! Óbvio que, se o anuncio, é que pretendo que nos leias também! Paz e alegrias!

http://sdcaustica.blogspot.com/2008/06/teologia-2-dos-dizeres-deus-palavra.html

Anônimo quarta-feira, junho 18, 2008 9:05:00 AM  

Levi,

Não sei se você já viu o vídeo, mas vai de encontro ao que você falou:

http://www.youtube.com/watch?v=mxwkSqUarow

Abraço!
Leo

Dudu Bandeira quarta-feira, junho 25, 2008 12:48:00 AM  

Levi !

Com certeza ainda temos muitas figurinhas a trocar !

Nossa realidade era a de igrejas leves, mas tão leves que, pra muitos aqui no Rio Grande, é até impossível de existir !

Mas não vamos ficar falando de coisas que não interessam ! (hehehehe)

Grande abraço ! Continue escrevendo que nós continuaremos lendo !

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Maria Flor

Sobre este blog

Para pensar e refletir sobre o cotidiano de um cristianismo que transcende as quatro paredes de um templo.


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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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