A Páscoa, a festa

Levi Nauter


No meu tempo de guri (atualmente sou um guri, digamos, mais experiente), amava dois eventos que ocorriam na igreja fundamentalista que eu frequentava. Nessa época, o templo ficava abarrotado de gente. Pessoas que nunca pisavam numa igreja estavam lá, descaradas, aguardando o final do evento. Descaradas não tem aqui sentido pejorativo senão estratégico, bastará uma reflexão sobre o processo de formação de tal palavra para se descobrir. Note-se, voltando ao tema, que o mais importante era o final do evento e não o evento em si. Mais interessante era que eu, nascido e criado naquele ambiente igrejeiro, também ansiava pelo final da coisa.

Um dos eventos ocorria anualmente no mês de dezembro. Era o Natal. O outro era a Páscoa, que não tinha precisamente uma data definida. Em tais momentos a criançada era incentivada a ‘declamar’ poesias, encenar jograis e esquetes. Ainda lembro da vergonha que eu tinha em ter de dizer coisas como “Jesus nasceu em Belém, no meu coração também”. Na Páscoa, geralmente sobrava-me a opção de cantar a estridente Via dolorosa. Em muitas dessas ocasiões, ter que subir no palco era-me uma via dolorosa. Porém, o final era promissor. Bastava a nós pequenos seres subir no palco lembrando que cada um que declamava diminuía o tempo de espera.

Mas, afinal, o que acontecia ao fim dessas reuniões? Por que enchia o templo em tais eventos?

Ganhávamos um pacote com doces.

O natal era maravilhoso porque após as declamações eu me deliciava com bombons, mandolate, pipoca, balas e o desafiador quebra-queixo. Na época da páscoa uma ação entre irmãos proporcionava o acréscimo do chocolate, ocasião em que se evitava a colocação do coelho. Os dois eventos também eram bons porque nessa época a gente podia ser criança e não mini-adulto. Nessas épocas eu podia ser eu. Nas duas datas os discursos eram mais leves: falava-se mais sobre Cristo e menos de regras.

Tempos depois apareceu um pastor azedo; uma espécie de limão. Um pastor que devia ter, em vez da Bíblia, um balde de água fria. Ele amava jogar água fria nas crianças e nos adultos. Ocorre que criança reclama menos, tem alguns medos e algumas vergonhas. Com esse pastorzinho descobrimos a maldade. Ou melhor, ele devia ‘perder’ algumas horas da sua preciosa vida procurando diabos em tudo para, em seguida, nos apresentar. Era proibido olhar desenhos animados – havia, na opinião dele, insinuações homo ou incitações à violência. Era proibido ouvir ‘música do mundo’ (mesmo que as do outro mundo não nos tivessem chegado). Era proibido jogar bola. Era proibido montar árvores natalinas. Era proibido, por fim, ganhar ‘ovo de páscoa’. Era o pastor desmancha prazer. Eu não entendia por que um pastor quase odiado pelas crianças (odiar era um verbo proibido) era tão amado pelos pais. Hoje entendo, claro.

E a Páscoa? Bem, a Páscoa tem todo aquele significado da ressurreição de Cristo que não vou falar porque muito já se falou a respeito e porque há uma penca de livros que tratam disso muito bem. Também tem a ver com a “data em que os judeus comemoram a libertação e fuga de seu povo escravizado no Egipto”. Para isso basta o Google.

Para mim a Páscoa tem uma representação mais particular que não se desgruda do que me referi no parágrafo anterior. Vejo-a como uma festa – tanto porque celebramos a ressurreição de Cristo, quanto porque comer doce é muito bom. Nas poucas vezes em que minha saudosa mãe colocava amendoim na casca de um ovo, pintava-os e escondia-os, eu tinha a sensação do desafio. O desafio de encontrar um mistério: como aquele ovo tinha ido parar num determinado lugar. Era um desafio mágico, na minha cabeça de criança; era um milagre fantástico. Milagre puro. Milagre que me tornou apaixonado por literatura. Porque só a literatura tem esse poder misterioso que mete medo e, ao mesmo tempo, dá prazer. Desconfio, portanto, que a Páscoa tornou-me leitor.

Eu pretendo seguir o mistério. Meu desejo é, inclusive, pintas as patinhas do coelho pela casa para ver a reação da Maria Flor. Terei o maior prazer em vê-la pulando de alegria e já me imagino chorando de regozijo com minha filha. E será que Deus não é assim? Seria Deus um insensível que odeia coelhos e crianças? Claro que não, e a Bíblia deixa isso claro. A falta do mistério, a meu ver, é que cria o teólogo burocrata ou o pastor azedo.

Quanto ao Egito, lembrei de uma música que ouvi com o David Quilan, Coming out of Egypt (Saindo do Egito) – do CD Som da Chuva 2. No encarte havia uma nota propondo que o significado do título da canção tinha a ver com deixar de lado os vãos costumes eclesiásticos, deixar para trás as regras e barganhas, etc. Eu também saí do meu Egito. Para mim (e só para mim), significou deixar a instituição para conhecer mais o Deus de quem sou filho. Significou ainda ignorar os pastores azedos e burocratas cristãos. Prefiro continuar celebrando a Páscoa como um tempo de festa, de júbilo porque Deus escolheu morrer por mim. Quero repassar isso para a minha Flor. Espero que até lá acabe, de uma vez por todas, os malabarismos com a palavra chuva (som da chuva, faz chover, dançar na chuva, entre outras criatividades). Quero celebrar também com meu chocolate, minha pipoca, meu filme. E como quebra-queixo, talvez eu releia o ótimo Pessach…, do Carlos H. Cony – um cristão às avessas.


Este texto foi publicado no dia 06-04-09 noutro espaço virtual onde escrevo mensalmente: www.osprotestantes.wordpress.com

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Para pensar e refletir sobre o cotidiano de um cristianismo que transcende as quatro paredes de um templo.


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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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