confiança


Levi Nauter

 

Hoje tive de andar aproximadamente dois quilômetros, a pé, da oficina de carros até a casa da minha sogra. Trajeto simples não fossem os trinta graus de calor e o descaso do serviço público para com o cidadão que paga em dia seus impostos (asfalto e calçada esburacados).
No trajeto, duas cenas chamaram minha atenção. Na primeira, um automóvel Uno, branco, de idade avançada, exibia três adesivos idênticos, na traseira e nas laterais: eu vou vencer (com uma foto de meio corpo do RR Soares). A outra cena foi numa rua feia, de casas feias (porque sujas, sem atrativos estéticos e antigas – anos 70). Num terreno com quatro casebres, a primeira casa possuía uma plaqueta com letras mal pintadas: joga-se cartas. Com as duas imagens segui meu caminho. No entanto, a inquietação me tomou. Comecei a divagar até que cheguei ao tema da confiabilidade.
Estou me recuperando de um pequeno procedimento cirúrgico e, por mais simples que seja, quem me operou foi um médico no qual confiei. Outros médicos sugeriram a cirurgia, um outro explicou-me o procedimento. Em nenhum deles eu sentira ‘firmeza’. Nenhum estabeleceu comigo a confiabilidade. Mas o que me operou sim. Com ele eu relaxei. Depois da consulta eu cheguei em casa e disse pra Lu: “os outros médicos não me interessaram, quero ser operado por esse doutor nem que eu tenha de pagar”. E assim foi.
Voltando aos deuses, porque a meu ver trata-se dessas entidades, eu não via criticidade nos lugares onde estavam as placas. O que teria levado o dono ou a dona do carro a colocar um adesivo daqueles no carro? Seria a frase? Seria a foto? Ou as duas coisas? E qual a diferença entre EU VOU VENCER para o RR e EU VOU VENCER para o usuário do adjetivo? Lembremos que um estava com um Fiat Uno, o outro, continua a oferecer milhões por showzinho (ao que parece cogitou comprar o SBT. Pode parecer razoável a um querer trocar de carro, enquanto que para o outro não é menos razoável intentar ampliar seu poder de mídia. Um último questionamento: qual a diferença entre ter e não ter a foto do RR nesses adesivos?
Adiante na divagação vem a placa no casebre. É possível confiar em quem joga cartas e vive na miséria terrível? Por que quem prevê o futuro a outrem não prevê para si próprio algo bem bom? O deus dessa ou desse “carteiro/carteira” sente prazer com o submundo de seus mensageiros?
Adianto-me em dizer que sou um crente. Creio na importância de se ter sonhos, objetivos, propósito. Creio também na relevância de se buscar meios (mais de um) que proporcione a realização dessas metas o mais rápido possível. Eu ainda creio em milagres (o que alguns chamariam de sorte). Descreio, contudo, de crenças em cartas, frases de efeito, em coisas do tipo The Secret. Não creio em milagres com copo d’água e/ou com foto desse ou daquele santo forte (e nisso se inclui o nada santo RR). Na mesma proporção desacredito do fatalismo, aquelas coisas do tipo ‘o que você faria se só tivesse 30 dias para viver?’. Piorou ainda a falácia do ‘Deus é que sabe’, ou ‘Deus quis assim’, ou ‘Se Deus quiser’ – entre outras.
Como diria O rappa, “minha fé é minha cultura”.
Acredito nas minhas pernas, nos meus braços, nos cinco sentidos e na força de vontade. A ética, a dignidade, a legalidade, o bom senso, a cooperação, a humildade/simplicidade, tudo pode me levar à realização daquilo que vislumbro. Como um cristão sem igreja (e não sem um Deus, com quem venho buscando uma relação mais baseada na Graça) acredito que o Todo-poderoso é quem me dá forças ao longo do caminho.
Portanto, eu jamais colocarei adesivos com frases de efeito em meu carro. Ademais, símbolo nenhum que identifique a minha crença. Penso que quem faz isso tem muito mais responsabilidade em aliar discurso com prática. Outros há por aí, por exemplo, que com símbolos e dizeres cristãos ultrapassam o sinal vermelho. É tempo de coerência.
Eu não sei jogar cartas e nunca fui a alguém atrás disso. A bem da verdade, não creio que cartas possam me dizer algo. Elas não convivem comigo. Somente pessoas podem me sugerir o que fazer; mas as que comigo convivem. Se, porém, eu fosse procurar um ou uma cartomante – num momento de irracionalidade – não seria alguém com uma vida parecida com a minha ou menos. Não seria com quem quer prever meu futuro sem ter previsto o seu próprio porvir. Teria de ser alguém que me pudesse servir de modelo, exemplo naquilo que eu busco; haveria de ter uma conduta séria, ética, legalizada e ilibada. Do contrário eu agradeceria. Um cego não pode guiar outro.
A confiabilidade não se dá por placas ou adesivos. É mais profunda, advém da relação.




NOTA
Texto escrito em 18-01 e digitado em 02-02-2011. Digitado ao som do trio Lady Antebellum, CD Need You Now.


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Maria Flor

Sobre este blog

Para pensar e refletir sobre o cotidiano de um cristianismo que transcende as quatro paredes de um templo.


"Viver é escolher, é arriscar-se a enganar, aceitar o risco de ser culpado, de cometer erros" [Paul Tournier]

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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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  • PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS PERFEITAS, de John Burke
  • OS DESAFIOS DA ESCRITA, de Roger Chartier