Levi Nauter
Dormir é a suprema genialidade. Kierkegaard
Tomo a liberdade de sugestionar a leitura de três obras lidas nos últimos meses (jan-fev-mar). Elas não significam a (re)descoberta da roda, mas a ampliação da reflexão sobre nosso cotidiano. Em relação a estar postado num blog sobre cristianismo, a justificativa tem a ver com a quebra, ainda que paulatina, da idéia velada de que crente só lê crente ou, única e exclusivamente, a Bíblia. O cristão, querendo ou não, lê o mundo antes de ler o texto grafado - como, aliás, qualquer outra pessoa que está, tanto quanto ele, neste mundo. Começam a chegar publicações ao grande público cuja temática gira em torno de "o que é um texto?". Um texto, a partir dessas observações, é tudo o que vemos, lemos, interpretamos, interagimos. Assim, nossos olhos e nosso tato são leitores daquilo que vêem ou tocam.
A primeira sugestão é a leitura de A parte do diabo, de Michel Maffesoli. Uma obra que aborda a subversão pós-moderna. Mais que isso, diz, às vezes direta, às vezes indiretamente, aquilo que fazemos como que para sublimar nossas tristezas, frustrações, bem como nossas euforias, protestos, reivindicações; nossas vivências, afinal. Maffesoli propõe-nos uma vivência mais harmônica, não necessariamente concordante, com nossas disparidades. A parte do diabo parece ser um antônimo da parte de Deus; e nessa esteira temos a alegria/tristeza, o recato/piercing, o silêncio/festa ravi, entre outros duplos. Em meio a essa análise, o autor não esquece de alfinetar e tocar em pontos sensíveis da religiosidade - algo que nós poderíamos também fazer.
De tanto querer educar a natureza, chegamos aos estragos econômicos de que começamos a nos conscientizar. (Maffesoli, p. 33)
Qualquer um é pessoa: ator de uma teatralidade global. Nela, desempenha papéis diversos que só têm valor por sua multiplicidade e sua interação. (Idem, p. 99)
...o divino encarna-se no corpo social... (Idem, p. 125)
A maior verdade de alguma coisa é e não é, ao mesmo tempo. (Idem, p. 126)
A segunda sugestão é a leitura de um filósofo inconformado. Inconformismo que não significa, diga-se logo, desesperança ou nihilimo; mas a discordância de um superficialismo hipócrita e contraproducente. Somente neste caso específico, uno-me ao best-seller e auto-ajuda cristão Rick Warren que sugere, quando comemos peixe: "coma a carne, deixe os espinhos". Comer espinhos é sempre uma tarefa complicada, embora seja possível encontrar alguns sugerindo que, comendo-os, teremos uma pedra a mais em nossa coroa celestial. Desconfio que seja a mesma história das setenta mulheres que, dizem, é contada aos muçulmanos. Em todo caso, leiam A arte de escrever, de Arthur Schopenhauer.
...só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profundidade. (Schopenhauer, p. 39)
O mais belo pensamento corre o perigo de ser irremediavelmente esquecido quando não é escrito... (Idem, p. 52)
Quando lemos, outra pessoa pensa por nós... (Idem, p. 127)
Aproveitem o muito que há de bom na obra e, se pasmarem, fica, de soslaio, a proposta de Yalom para A cura de Schopenhauer.
A última sugestão, de alguma forma traz uma importância que abarca as duas outras já feitas. Em Maffesoli bem como em Schopenhauer o que lemos são, sobretudo, cosmovisões, interpretações de outras leituras; o lido, com o passar dos dias, vai ressignificado e alargando nossas memórias. E, mesmo que não nos demos conta, quando dialogamos vamos (re)transmitindo nossos recônditos.
Um dia assisti a uma entrevista com o cantor e compositor Martinho da Vila. Nela ele sugeria que todos nós deveríamos escrever sobre nossas vidas, como forma de entendê-la e de preservá-la. É o que tenho tentado fazer ao postar textos neste blog. Foi também o que fizeram os autores do livro que tem sido meu maior referencial de vida, a Biblia.
José Saramago fez isso muito bem ao escrever As pequenas memórias. Um bom exemplar para se ler e, inspirado na leitura, fazer, via escrita, terapia (minha preferência) a uma quebra de maldição (a espiritualização do consultório). Fica evidente na obra saramaguiana a relevância daquilo que nos fazem (ou o que nós fazemos) quando somos crianças e adolescentes. Noutros momentos, surgem interrogações:
Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. (Saramago, p. 58)
Fica a dica. Leiam e aproveitem para ampliar conhecimentos e reflexões. Após a leitura, a audição do CD Eu não peço desculpas, com Caetano Veloso e Jorge Mautner. Maravilhoso!
AS OBRAS
MAFFESOLI, Michel. A parte do diabo.Rio de Janeiro: Record, 2004.
SARAMAGO, José. As pequenas memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2005.
A ILUSTRAÇÃO
Da obra AS MIL E UMA NOITES, contos árabes. Trad por Ferreira Gullar. Rio de Janeiro, ed. Revan, 2006, 4. ed.
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