[bobagens cristãs] – texto 6

Levi Nauter




“É melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada” – Rubem Alves



Para brindar o encerramento das férias, fizemos uma janta especial. Eu e a Lu saboreamos um delicioso peixe assado com verduras dentro, uma ótima salada de rúcula, um gostoso pão francês com gergilin e, para molhar tudo, para ‘ungir’ tudo, um maravilhoso vinho tinto. Que janta!
Na pós-janta pensei duas coisas importantes. A primeira foi um retrospecto de minha vida de trinta e dois anos. Fui criado num ambiente pseudocrístão, muitos dos conceitos que me tentaram incutir estão caindo por terra. O mundo não era e não é tão redondo e certinho como supunham. Depois, ousei sair de uma denominação ferrenhamente pentecostal (porque briga por esse título), cuja hierarquia pressupõe uma obediência cega a um único mandante. Fui para outra placa. Apenas mudei de endereço: os mesmos problemas, os mesmos anseios, os afãs pelo cifrão pouco mudaram. Decidi sair, por ora, de todo tipo institucionalizado.
Nessa esteira de pensamento, fiz uma comparação Deus versus Igreja-instituição. Uma apenas, um vinho não nos deixa pensar muito. A igreja, obviamente que representada por seus líderes ou formadores de opinião (em geral, famílias tradicionais. Oh lugar pra ter briga de família), sempre me acusou de amaldiçoado. Claramente afirmava: “quem não dá dízimo está debaixo de maldição”. Ainda bem, não dei ouvido a essa balela. Também nunca me deixei ser ungido nas vezes em que optei por dizimar – acho válido o texto bíblico que sugere discrição, Mt 6.3. E Deus? Pois, Ele nunca me considerou um maldito. Com Sua ajuda e nosso esforço, a Lu formou-se em História; eu, em Letras. Certamente com a ajuda divina adquirimos um bom terreno numa cidade com cara de interior, e tudo está pronto para a construção. Ainda com a ajuda daquele que É, mesmo com um salário distante ao de muitos ‘obreiros’, consigo adquirir livros e CDs. Nunca vi uma maldição dessas. Estar amaldiçoado assim não parece ser uma mal negócio.
Não estou numa igreja formalizada, mas, que fique registrado, tenho um contato constante com os formalizados, com os que seguem a cartilha denominacional, com os rickwarreanos – adeptos da visão mercadológica das mega-igrejas, com os que acham que um lugar no céu é garantido com dez por cento ou com a apresentação da carteira de membro e/ou com a lista de presença nas reuniões, bem como mediante a apresentação da camiseta que se vestiu ao longo da caminhada cristã. Ao mesmo tempo, e também se registre, falo com os decepcionados com a graça, com os que ousam questionar os medalhões, com os que, graças a Deus, não ganham da instituição e, portanto, não aceitam cabresto.
Isso quer dizer que não vou topar desaforos de pessoas institucionalizadas que querem impor a teologia do medo. Encontrei um líder igrejeiro que só não me pôs no inferno ou na cruz porque não é possível. Isso não é pra qualquer um. Questionou como eu iria para o céu, se Cristo voltasse hoje, já que não dou dízimo e não congrego. Questionou se sou ou não salvo. Disse que Deus exige que eu sirva numa igreja, ao que discordei obviamente. Em síntese disse que eu poderia me considerar no inferno e encerrou sugerindo: “se quiseres conversar e voltar, estou à disposição”. Poupe-me, pensei. Por ironia, estávamos conversando (na verdade eu estava sendo pressionado, contra a minha vontade) num grande hipermercado, estava em frente a uma prateleira de DVDs. Enquanto tentava escapar do sufoco peguei um DVD na mão e tasquei: “vou ao encontro da Lu, ela deve estar preocupada”. Ufa, que alívio! Qual era o DVD? Pet Shop Mundo Cão, do Zeca Baleiro. Santa ironia.
A segunda coisa que pensei foi como um vinho pode ser bom. Dormi que foi uma beleza. A teologia do medo não colou. As férias foram ótimas, o ano promete e não me sinto nenhum pouco amaldiçoado. Ao contrário, nunca me senti tão dependente de Deus que tem sido maravilhoso comigo. Não recebo profetadas e continuo guiado por Ele. A instituição precisa rever alguns conceitos. Urgente.

Respeitando Diretos e Deveres

Levi Nauter
Para ser um cristão comprometido com os direitos autorais, devo corrigir uma falha: esqueci de dizer que a ilustração do texto O evangelho da guerra foi extraída da obra Rapa de tacho: contos gauchescos, de Apparicio Silva Rillo, publicada pela Tchê! Editora, em 1982. A ilustração foi feita por Bier. Vale a pena ler tanto para dar boas risadas quanto para se apetecer com a nossa cultura.

[o evangelho da guerra] - texto 5


Levi Nauter







Só pode escrever com objetividade sobre o protestantismo quem nunca o amou e nunca o odiou. RUBEM ALVES


Ainda lembro de quando, nos meus oito anos de idade, cantava a canção "eu sou um soldadinho de Cristo Jesus...". Mais que isso, também lembro, já na flor da juventude, de outra canção: o nosso General. Ela dizia mais ou menos assim:

Pelo Senhor marchamos, sim
Seu exército poderoso é
Sua glória será vista em toda Terra
(...)
O nosso general é Cristo...

Eu fazia o maior sucesso tocando bateria, às vezes cantando; noutras, ao violão e na voz. Domingo, 15 horas, o sol pegando, eu suando e o povo, na grande maioria jovem, pulando. Minha bateria era um caco, mas isso pouco importava. O fervor e a raiva do inimigo eram a tônica.
Há alguns dias, o televangelista Pat Robertson também fez um discurso de guerra. Disse que Hugo Chaves, opositor ferrenho do império norte-americano e quiçá da democracia, deveria ser morto. Talvez Mário Quintana, se estivesse vivo, reafirmaria que esse também é um jeito estranho de amar o próximo. Eu prefiro dizer que esse é um jeito estranho e feio de ser cristão.
Esses dias fomos, eu e a Lu, comprar alguns alimentos para o café da tarde e resolvemos esticar, dando uma volta até o final do bairro onde atualmente moramos, um lugar pobre. Não se pode dizer que nossa casa fica em um lugar nobre, longe disso. Mas na medida em que vamos avançando para o final do bairro cada vez mais se vê o barro, a miséria. Pois lá também encontramos um anúncio da guerra. Passamos na frente da Igreja Evangélica Pentecostal Soldados de Jesus. Olhei mais de uma vez para me certificar de que não era sonho. Claro que até chegar nessa denominação passei por pelo menos uma meia dúzia dessas, digamos, top of mind. Dentre elas, uma cujo subtítulo é mais importante que o próprio nome da denominação: show da fé. Nunca imaginei que algum dia a fé carecesse de se mostrar assim tão ferrenha, em horário nobre, em rede nacional.
Um conhecido meu se identificou como sendo um participante da tropa do exército celestial (não disse se era a de choque). Eu mesmo, nos meus ansiosos dezoito anos, época de quartel, de militarismo, de ‘servir à pátria’, passei uma semana fazendo testes num batalhão da região metropolitana de Porto Alegre. Foi horrível, nem gosto de lembrar!

Há um discurso
[2] de guerra no ar. Um falar que não parece querer compartilhar o evangelho, senão empurrar, à força, uma visão de mundo grandemente equivocada e desrespeitosa para com o ser humano. Esse discurso interessa nessa reflexão. A base está em metáforas não palpáveis, que depende de crenças. Para a internalização, utiliza-se a teologia do medo[3].
Enquanto estudava sobre a língua e a literatura brasileira
[4], tive aulas com um excelente professor-doutor que também era teólogo. Foi um período pequeno, porém de grande aprendizado. A cadeira de semântica me traz boas lembranças. Sobretudo, lembro-me quando, num sábado inteiro, refletíamos sobre o discurso da guerra impregnado na nossa língua. Estávamos lendo, discutindo e retomando as idéias e as pesquisas de Lakoff e Johson . Os autores defendem que pensamos e agimos a partir de conceitos internalizados. Ou seja, “o que experienciamos e o que fazemos todos os dias são uma questão de metáfora” (p. 46). A nossa linguagem é reveladora, não há como negar. Através dela evidenciamos nosso sistema conceitual. Ocorre que a nossa maneira de pensar e agir é – por assim dizermos – abstrata, metafórica, não palpável. Quando nos utilizamos da linguagem, inconscientemente intuímos tornar a cosmovisão visível, palpável; isso, em termos lingüísticos, só é possível metaforicamente. Portanto, “a essência da metáfora é compreender e experienciar uma coisa em termos de outra” (p. 47-48).
Os mesmos autores, ao trazerem exemplos de metáforas cotidianas, falam da discussão como guerra, na qual

Vemos as pessoas com quem discutimos como um adversário. Atacamos suas posições e defendemos as nossas. Ganhamos e perdemos terreno. Planejamos e usamos estratégias. Se achamos uma posição indefensável, podemos abandoná-la e colocar-nos numa linha de ataque. Muitas das coisas que fazemos numa discussão são parcialmente estruturadas pelo conceito de guerra.
(LAKOFF, JOHSON: 2002, 47)

Frases como “seus argumentos são indefensáveis”, “ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação”, “jamais ganhei uma discussão com ele”, entre outras, ilustram essa ideologia que estamos acriticamente assimilando e propagando nos templos, bem como nas nossas falas cotidianas. Em muitos casos, o discurso bélico está de tal forma impregnado que não nos damos conta.

O discurso da guerra me incomoda. Não creio nele, não o quero.
E nada tem a ver com as pessoas que optaram, voluntariamente ou não, pelo militarismo. Em tempos de crise, a carreira militar pode ser uma boa opção. Tenho grandes amigos militares, dois em especial: o sargento Cleber, do Rio de Janeiro, e o Tenente Laerte, de Canoas. Eles, além de bons músicos, ajudaram-me a retirar alguns preconceitos – frutos possivelmente da falta de contato e de informação. Quando vejo um militar fardado ou quando assisto a filmes fico intrigado. Considero as roupas arcaicas, muito justas, pouco confortáveis. Também acho estranho passar no gueto militar, aquelas casas todas iguais, com soldados fortemente armados na frente e nos fundos. Aliás, o fardamento torna todos iguais. Mas é apenas aparência de igualdade. Provavelmente, alguém familiarizado note a diferença que a mim, de fora, é imperceptível, não obstante os filmes mostrarem homens (aqui esse gênero também constitui a maioria) sendo condecorados com medalhas, isto é, sendo diferenciados. O problema não está exatamente nisso que poderíamos chamar de perfumaria. A questão está na (1) aparência de igualdade, (2) na obediência inquestionável, (3) na idéia de poder e controle absolutos, (4) no conjunto de formalidades a serem seguidas e (5) na pretensão salvífica.
Incomoda-me o discurso bélico porque não vejo nele o evangelho de Cristo. Quando olho para as Escrituras e vejo Aquele a quem devo imitar
[5], vejo-o como o Príncipe da Paz[6]. Observo um Deus muito mais interessado nos doentes, nos pobres. Um Deus muito mais envolvido com as coisas típicas da humanidade: miséria, fome, festa, fartura, sonegação, negociatas, prostituição, choro, perdas.
O serviço militar objetiva defender o país de um ataque inimigo, defender suas fronteiras. “A segurança do Brasil em nossas mãos” é o slogan do Ministério da Defesa. O objetivo parece ser deixar-nos seguros, confiantes, sabendo que nada nem ninguém poderão nos tocar. Toda a estratégia e a ação bélica estão impreterivelmente sob a lei. Pois, eu não vivo o evangelho da lei. A lei contém erros, pretende ser regra e, portanto, gessa as ações, mortifica a liberdade. Quando alguém infringe a lei precisa ser punido com a mesma severidade constante da lei. Ocorre que quando o militar é o infringidor o julgamento é diferente de quando é um civil. Nesse sentido, a lei é desigual.
Quando uma situação fica como que fora de controle, chamam-se as forças armadas. Sabe-se, então, que a coisa ficou difícil. Quando vemos ou ouvimos que o Exército, por exemplo, assumiu o comando, sabemos, de antemão, que a ordem – ainda que indireta – pode ser atirar, matar. Um conhecido meu, referindo-se ao treinamento de tiro que recebe na Aeronáutica, disse-me: “sou treinado para atirar e acertar, não importa quem esteja na frente”. Parece que no evangelho da guerra ou você é aliado ou tem de morrer.
Acima, enumerei cinco questões que me incomodam no militarismo. Minha tentativa será fazer uma relação entre o discurso da guerra e o discurso bélico-religioso. Este tem sido comum no pentecostalismo e no neopentecostalismo, e as idéias, penso, advêm do norte (EUA). O norte tem sido rico em mandar-nos teorias pseudoteológicas baseadas em receitas, num suposto agir local de Deus. Lembro-me de uma triste época em que vivi tonto de tanto ler autores cujo objetivo é mostrar-nos muito mais a guerra do que Aquele que já venceu a morte
[7]. Rebecca Brown[8], para ficar num exemplo, fez-me ‘doar’ todos os meus CDs não-cristãos, além de não mais olhar a MTV. Ainda bem, depois, de um tempo - como diriam os guerreiros – tive uma nova revelação que, para meu alívio, trouxe de volta os maravilhosos Chico Buarque, Caetano, Paula Toller, entre outros nomes da música brasileira. Quanto a MTV, a programação ficou tão ruim que automaticamente parei de sintonizar o canal.
Deixo claro, a fim de evitar aqueles contrapontos simplórios citando Gálatas 5.17 ou Ef 6.11-12, que creio no mundo espiritual. Contudo, não como se vem observando, quer dizer, romanceadamente a la Peretti, Lahaye & Jenkins
[9]. Tampouco creio na neurose pós-moderna das tomadas: tomar posse da benção, tomar posse da vitória, tomar a cidade tal. Muito menos acredito no ‘mapa astral’ das cidades, ou seja, na crença de que é necessário perder tempo tentando descobrir quem morou num determinado local (o que fazia? Era batuqueiro?...). Toda essa parafernália leva o crente a uma neurose, no sentido psicanalítico dado por Tournier: uma angústia, cujo “esforço que se faz para escapar dela é o que acaba provocando-a” (p. 19). Talvez essa seja a razão de vermos tanta gente preocupada em denominar sensações. Tenho um conhecido que diz saber o nome de muitos demônios. Pobreza? Zé Pilintra. Sensualidade? Pomba-gira. A própria Rebecca Brown, que citei acima, tem livro-receita de como orar por problemas específicos. Uma afronta a Deus. E tem mais, igrejas modernas – provavelmente porque descobriram que o Diabo, conforme a Bíblia[10], é o pai da mentira – decidiram abolir nomes complexos e resolveram torná-los, digamos, ‘farinha do mesmo saco’. Tomamos conhecimento dos encostos. Desemprego, brigas familiares, baixos salários, dores de cabeça, tentações (em qualquer área) e mais um montão de problemas que não lembramos? Fácil, seu bobo, você tem um em-cos-to. Você não pode fazer nada, eles são invisíveis, astutos, experientes. Venha pra cá! E tome rituais em nós mortais.
Agora é que posso retomar as cinco questões que ainda estão pendentes. Vamos lá.

Aparência de igualdade
Todo o fardamento militar dá uma aparência de igualdade. Os trejeitos são semelhantes. As diferenças devem ser silenciadas. No discurso evangélico da guerra as palavras são como que mágicas: encosto, perturbação espiritual, bloqueio mental, maldição hereditária ou simplesmente maldição. A oração é ritualística e, na maioria das vezes, Deus pode até se sentir acuado de tanto que tentam mandar nEle. O cristão não pode duvidar nem dizer que não sente uma dita cura. O problema será só dele. Não foi curado? Não teve fé. Um dia ouvindo uma rádio de grande audiência evangélica, um ouvinte tentou dizer que, mesmo após a oração para a cura, não se sentia curado, o locutor-pregador-curador respondeu: “minha irmã, tome posse, acredite”. Faltou o “te f...”

Obediência inquestionável
Basta um pouco de atenção para se notar uma pretensa autoridade dos ‘guerreiros’ de Deus. Eles impõem uma pseudoautoridade a si próprios através do discurso que, muitas vezes, sufoca o outro (o ouvinte, o fiel, o leitor, o telespectador). E uma das formas mais evidentes para isso está na ênfase do EU – embora não fique só nisso. A título de exemplo, posso citar os televangelistas no papel de vendedores: “esses livros são revelações que Deus me [eu subentendido] deu”, ou “esse material, se fosse vendido ao preço normal, custaria tanto, mas EU estou fazendo por tanto”. O afã pela autoridade suprema está em outras frases: “eu declaro...”, “eu quero te abençoar”, “eu quero orar por quebra de maldição” etc.
O eu é tão necessário no discurso bélico que os pregadores e/ou líderes falam como se nunca errassem, como se fossem infalíveis, como se tivessem absoluto domínio sobre todas as forças do bem e do mal. É como se tivessem arrancado a chaves da morte das mãos de Cristo
[11]. É como se fossem santos, super santos. Aí, tal como os superiores militares, exigem continências, exigem preferencialmente o “sim, senhor” e tascam, sem nenhum pudor textos bíblicos para ratificarem o reinado sobre os fiéis[12], esquecendo-se do que está grafado em 2Co 13.10, aliás, o capítulo do amor, que não compartilha com o eu mas com o nós. Acho providencial encerrar esse tópico com a palavra do pastor Ken Blue (p. 16 – ver bibliografia):
...os abusadores eclesiásticos de nossos dias, autoritários e narcisistas, sáo os equivalentes modernos dos fariseus a quem Jesus repreendeu. Jesus não apenas expôs e denunciou os fariseus como falsos pastores, como também se ofereceu como advogado para suas vítimas. (...) Jesus não se conformou com o abuso espiritual – ele o enfrentou. Ele exigiu mudanças. Por que deveríamos nós deixar por menos?

Idéia de poder e controle absolutos
No tópico acima disse quase tudo. O que me resta? Apenas ratificar que, tal como no militarismo, a idéia é o controle, o poder. Lembro-me do dia em que um senhor me disse – com cara de felicidade fundamentalista: “agora nossa igreja vai pra frente, o irmão fulano domina o pecado”. Uma fala típica de fundamentalistas que amam a opressão – espero, sinceramente, que seja sem saber.
Pois, com os guerreiros de Deus não é diferente. Eles procuram deixar claro, de alguma forma, o quanto sabem a respeito de assuntos espirituais, da metafísica ‘gospel’. Quando os ouvimos num sermão a sensação que temos é a de que eles não mais pecam. Estão noutro patamar. Raramente colocam o nós no sermão, a satisfação deles está em confrontar: “como está sua vida diante de Deus”, em vez de ‘como estão nossas vidas’. São adeptos do receituário, das listas dos problemas e soluções, das orações pré-prontas, das hierarquias de pecados. Parecem terem descoberto a roda. Para eles – além da Bíblia, na qual Jesus curava cegos sem receitas, basta dar uma pesquisada para se certificar – cito um trecho da música A utilidade das palavras, de Nei Lisboa
[13], grande compositor e músico gaúcho que, liberto da falácia música do mundo/música de outro mundo, posso ouvir e ler:

Vamos salvar os búfalos
E o pensamento também
Das idéias com reserva antecipada
Das certezas pré-gravadas
Vamos salvar o homem das risadas
E das legendas douradas da Sony (...)
Vamos salvar o pensamento
De alianças com carrascos

Conjunto de formalidades a serem seguidas e pretensão salvífica
Esses dois tópicos podem ser colocados em um, haja vista que não me parece normal ter-se um conjunto de regras, de formalidades a serem seguidas se não se tem uma pretensão, um motivo. E, no caso da igreja, a idéia, às vezes implícita, é a salvação.
Eu concordo plenamente que estamos aqui nesse mundo para cumprir o “ide” de Cristo
[14], que preciso ser sal e luz, não apenas dentro, mas, principalmente, fora das quatro paredes do templo. Mas não tenho pretensões salvíficas, no sentido de que não cabe a mim a tarefa de salvar. Quando penso que alguém está, será ou não deveria estar nem ser salvo estou julgando; não cabe a mim fazer tal julgamento. Digo isso porque é muito comum ouvir cristãos enchendo a boca e como que determinando ‘fulano morreu sem (ou com, dependendo do caso) salvação’. Normalmente esse tipo de julgamento está profundamente mergulhado na idéia do bem e do mal[15]. Ou seja, é do bem e, portanto, da salvação aquele que bem representa o discurso dominante; é do mal e, portanto, da perdição (fogo eterno, inferno, entre outros [pseudo]sinônimos) aquele que, nalgum momento, transgrediu, discordou ou, na clássica fala, rebelou-se.
As formalidades do evangelho da guerra têm a finalidade de, na medida do possível, fazer unificar os discursos e as práticas da membresia. Tal unificação se bifurca: de um lado fala/ação visando ganhar-se status perante a comunidade local na qual o templo está inserido; de outro, fala/ação de modo a perpetuar a hierarquia liderança e liderado. Os sermões, as palestras, as pregações (pouco importa o nome que se dê) contêm uma ideologia e, em conseqüência, uma nomenclatura de uniformização embasada tanto na Bíblia quanto numa suposta literatura, digamos, de referência. Exemplifico lembrando que quando um adepto do belicismo quer contestar quem diz que está difícil este mundo fala “nossa luta não é contra a carne”
[16]; também lembro dos que tanto leram Rebecca Brown que só pensam em “brecha”. Alguma coisa não está bem? Veja se não há alguma brecha! E para confirmar o afirmado acima, a saber, que todo o discurso baseia-se na lei, reescrevo o diálogo que acabei de escrever – a título de ilustração: Alguma coisa não está bem? Veja se não há alguma brecha dando alguma base legal para o inimigo! As palavras de ordem, resumindo, são, entre outras: brecha, autoridade espiritual, domínio, perturbação, bloqueio etc.
O discurso da guerra com a finalidade de perpetuar a hierarquia simplesmente é um diálogo exatamente como estou fazendo nesse texto, propositalmente, isto é, vai sendo repetitivo com vagar. Quando nos damos conta, estamos assimilando o mesmo discurso devido à insistência em nosso ouvido. É dessa forma que vemos alguns fiéis (e esses merecem o título) repetindo acriticamente palavras ou frases como “tá amarrado”, “brecha”, “maldição”, “inimigo” etc. Nessa linha, vêm discursos que vão internalizando a obediência cega. Quem não usa seus talentos, quem não atende à solicitação do líder, quem opta por ficar ‘no banco’ torna-se o rebelde. Ainda na esteira da rebeldia, a liderança dá um jeito de criar nomes para (pseudo) espíritos: espírito de rebeldia, espírito de divisão, espírito de pobreza.
A fala/discurso que visa o status tem a ver com o crescimento da denominação ou do templo na comunidade em que está inserida. Para isso, lança-se mão do outrar (tornar-se o outro, empatia). Pouco nos damos conta, no entanto, de que outramos quem conhecemos. Por isso as igrejas estão ‘crescendo’, i.e., têm uma aparência de crescimento: nela estão os filhos, dos filhos, dos filhos do irmão fulano de tal. Perpetua-se a hierarquia familiar. E cada qual, na medida em que se torna institucionalizado, vai, ao mesmo tempo, com raríssimas exceções, tornando-se inútil para a sociedade secular – e como boa desculpa cita o Salmo 1. Mas a política continua sendo, por assim dizermos, a da boa vizinhança (usa-se uma indumentária igual a dos vizinhos, sente-se as mesmas necessidades, porém, considera-se superior e de outro mundo). Ocorre que as boas obras poderão cativar (discurso de guerra antiga) o vizinho.
A fala/discurso para com os fiéis, para manter a hierarquia, é o discurso do medo (do tipo “tomem jeito, Cristo está voltando”) ou o do impressionismo. Em relação ao do medo, temos as Rebeccas da vida, as apocalípticas em plena contradição com o pedido de Cristo em João 14.1-3, 27. Mais que a teoria do medo, a hierarquia vai sendo demonstrada com um outro discurso, o da superioridade do líder. Líderes são, nessa perspectiva, valentes, não têm medo de nada. E escrevem livros instruindo. Fui visitar um casal que gosta de ler o que eles chamam de “literatura evangélica”. Ao bisbilhotar a biblioteca encontrei duas obras que ilustram o que estou tentando dizer. São dois exemplos do discurso da guerra. O primeiro é a apresentação do livro Encouraçados para a guerra
[17]. Leiamos:
O objetivo deste livro é instruir os servos de Deus a conhecer as ferramentas que Satanás usa, a identificar o campo de guerra e o campo de batalha, aprender a desenvolver suas armas espirituais e a se fortalecer como soldado de Cristo. Após ler, e colocar em prática, você nunca ira desistir ou deixar alguém desistir da fé em Jesus Cristo.
Esse é o típico discurso da guerra, um evangelho que quer meter medo nas pessoas, quer que elas decorem fórmulas, regras e têm pretensões salvíficas. O que mais me chama a atenção é que o foco – pelo menos no que está escrito – não é Cristo, mas, sim, o poder do mal. Usa-se o mal para atrair adeptos para o bem. Que estranho, eu prefiro Cristo porque Ele é Deus, é Soberano, é Maravilhoso é Tudo. Com todo o respeito, pra mim, o Diabo que se dane. Pouco me importa o que ele faça, eu quero é Deus (não só a musiquinha).
A outra obra que de uma olhadela foi Preparado para a batalha: o caráter, as armas e as estratégias do guerreiro espiritual
[18]. Leia alguns trechos do prefácio intitulado ‘Aproveite a oportunidade’, páginas 9-10:
“(...) Uma batalha se levanta nas almas e mentes de homens e mulheres. Clarins desta batalha chamam para o combate. Convocam os crentes individualmente e também a Igreja cristã a lutar desesperadamente, criar estratégias, organizar-se e, finalmente, mobilizar-se para conquistar indivíduos, comunidades e nações para Cristo. (...) Preparado para a batalha é um livro que identifica, descreve e instrui os crentes em quatro áreas básicas da guerra espiritual: (1) a natureza da batalha, (2) o caráter do soldado, (3) as armas do soldado e (4) a estratégia para a batalha. (...) Será que os cristãos do Ocidente despertarão de sua sonolência, vestirão a armadura de Deus e marcharão para a batalha? ...Acordemos! A batalha está começando!”
Oh evangelho do medo! Dele quero distância. “Será o medo o início da religião?”, uno-me ao questionamento e à reflexão do ex-pastor, teólogo, psicanalista, professor e educador Rubem Alves (Alves, 2004: 18), “a teologia cristã tradicional é um pião enorme que gira sobre essa aguda ponta de ferro chamada inferno”.
Prefiro o real evangelho de Cristo, que não dicotomiza este mundo com o vindouro, ou seja, enquanto estou aqui devo trazer a luz, ser sal, fazer daqui um pedaço do céu. Ao mesmo tempo, quero um evangelho que incentive a leitura de obras cristãs e não-cristãs, porque acredito piamente que Deus pode e usa as duas. Busco um evangelho menos empreendedorístico, menos empresa, que não me obrigue a ‘vestir a camiseta’ denominacional nem me obrigue a pertencer a um departamento/ministério. Meu ministério é viver e, com minha vida, evangelizar. Amar as pessoas sabendo que elas podem errar e são, potencialmente, más devido ao pecado. Minha missão, árdua, é passar pelas fases de filho pródigo a filho mais velho e, por fim, ser como um pai – capaz de doar-me
[19].
O evangelho da guerra, a teologia/teoria do medo, o discurso bélico são variações sobre um mesmo tema: colocar, aos poucos, o medo nas pessoas ao invés de falar sobre o amor de Cristo e o que deveria ser o amor cristão. A suposta salvação está em que obedecendo às regras e apreendendo o discurso o céu está quase garantido. Assim, perpetua-se o poder e a institucionalização. Talvez tenhamos que fazer a difícil regressão proposta por Jesus em Mt 18.2-5; 19.13-14 – bem como o registro em Jo 16.21. Rubem Alves (Alves, 2004: 53) dá um porquê justificável para essa regressão: “...as criancinhas ainda não experimentaram o fascínio diabólico do poder pelo poder e participam ainda da bem-aventurança paradisíaca em que o poder só tem sentido se produzir objetos de prazer.”
A criança é sempre um presente de Deus, e é a ela que devemos olhar para entender um pouco sobre a vida. Ela nos faz mudar atitudes
[20]. Não pensa na guerra. Acho que está mais para uma teologia da alegria.




BIBLIOGRAFIA

LAKOFF, George; JOHSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas e São Paulo: Mercado das Letras e Educ, 2002.
ALVES, Rubem. Se eu pudesse viver minha vida novamente. 6.ed. Campinas-SP: Verus, 2004.
____________. Religião e repressão. São Paulo: Teológica e Edições Loyola, 2005.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 6.ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 10.ed. São Paulo: Cortez, 2005.
TOURNIER, Paul. Mitos e neroses: desarmonia da vida moderna. São Paulo: ABU Editora; Viçosa: Ultimato, 2002.


PEQUENA AMOSTRA DO EVANGELHO DA GUERRA [tive que limitar devido o grande volume disponível no mercado]
Ataque a Nova York, de Márcio Nogueira, D’Sena Editora;
Vencendo as guerras invisíveis, de Marco Antonio Peixoto, Editora Vida;
O homem espiritual, de Watchman Nee, Editora Betânia – volume 1, 2 e 3;
Laços da Nova Era, de Marco André, Editora Betânia;
A divina revelação do céu, de Mary K. Baxter, editora Danprewan;
A divina revelação do inferno, de Mary K. Baxter, editora Danprewan;
A batalha final, de Rick Joyner, editora Danprewan;
A visão profética para o Século 21, de Rick Joyner, editora Danprewan;
Símbolos da Nova Era, de S.V. Milton, A.D. Santos Editora;
Como investigar crimes com a ajuda divina, de Daniel Gomes, CPAD;
Este mundo: lugar de lazer ou campo de batalha?, de A.W. Tozer, Danprewan;
Maldição ou benção, de Vanderlei Miranda, Editora Profetizando Vida;
Oração de guerra, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Escudo de oração, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Derrubando as fortalezas em sua cidade, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Igrejas que oram, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Espíritos territoriais, de C. Peter Wagner, editora Bompastor;
Porcos na sala, de Frank e Ida Mae Hammond, editora Bompastor;
Cristo nos resgata de toda maldição, de Neuza Itioka, editora Sepal;
Deus quer a sua cidade, de Neuza Itioka, editora Sepal;
Possuindo as portas do inimigo, de Cindy Jacobs, editora Atos;
A luta, de John White, Editora Cultura Cristã – ECC.






NOTAS
[1] Também postado no blog ANOTAÇÕES SOBRE UM CRISTIANISMO: www.anotacoessobreumcristianismo.blogspot.com
[2] Empreguei a palavra discurso na tentativa de chegar perto da definição dada por ORLANDI (ver bibliografia). Ou seja, “o discurso não é um conjunto de texto, é uma prática” (p. 55) que “se dá no interior de formações ideológicas” (p. 69) manifestado nos compartilhamentos entre as pessoas – de forma oral ou escrita. E, por fim, Orlandi encerra dizendo: “a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada (isto é, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada) determina o que pode e deve ser dito” (p. 58). Discurso também deve ser entendido na perspectiva da interação nas relações interpessoais, isto é, a pessoa com quem falamos deverá ter algum tipo de conhecimento da cosmovisão para melhor poder participar de eventuais discussões (Koch e Travaglia, ver bibliografia).
[3] Teologia do Medo é um termo que venho utilizando para referir-me a termos que amedrontam as pessoas. Um exemplo disso pode ser o que comumente fazem com os músicos: “você não está tocando/cantando? Deus vai cobrar de ti”. Há muito mais a ser abordado noutro artigo.
[4] Sou licenciado em Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA.
[5] 1Co 11.1; Ef 5.1.
[6] Is 9.6.
[7] At 2.24; 2Tm 1.10; Hb 2.14-15.
[8] A autora escreveu Ele veio para libertar os cativos, Prepare-se para a guerra, Vaso para honra, entre outras. Prepare-se..., livro que possuo, foi publicado pela Danprewan Editora e Comunicação Evangélica Ltda.
[9] Peretti é o autor de Este mundo tenebroso, os outros são os autores da série Deixados para trás – editora Vida e United Press, respectivamente. Citei-os porque tais autores escreveram ficções, portanto, ficção não deve, em nenhuma hipótese, ser tomado como efetiva realidade. É romance.
[10] Jo 8.44.
[11] Ap 1.18
[12] Rm 13.1-3. Mesmo que veladamente, surgem ‘brechas’ para os preconceitos de gênero a partir de 1Co 7.4. Nessa esteira, parece-me, também vem a desculpa para que alguns seja apolíticos: 1Tm 2.1-2; Tt 3.1-2. Não poderia ficar de fora o clássico 1Pe 2.13-19.
[13] Do CD Cena beatnik, Nei Lisboa, Acit, 2001.
[14] Mc 16.15-16.
[15] Sugiro a leitura do interessante, e não menos engajado, Eduardo Galeano, especialmente a obra O teatro do bem e do mal, volume 293 da Coleção L&PM Pocket, de 2006. o autor faz uma análise dessa palhaçada norte-americana, pseudocristã a fim de ‘salvar’o mundo do mal. Quem será o mal nessa história?
[16] Também lembro do grande Caio Fábio, em A crise de ser e de ter, da Vinde, 1995. Ele diz que os ‘guerreiros’ não conseguem lutar em duas frentes “ao mesmo tempo: no mundo invisível e no mundo visível; no mundo espiritual e na sociedade humana. Nesse tipo de movimento de guerra espiritual amarram-se todos os demônios lá nas regiões celestes, mas esquecem-se de que os demônios humanos continuam soltos aqui.” (p. 23)
[17] O autor se identifica como Pr. Dr. Carlos Roberto Braço Forte David (em seu folder de apresentação, porque no livro é Carlos Roberto David). A obra foi publicada pela Editora Hosana, São Paulo, em 2001. Em 2007 sairá o volume 2. www.boaterra.com.br
[18] De Sammy Tippit, publicado pela JUERP (Rio de Janeiro, 1995), traduzido por Welton Kelly Barbosa Lima.
[19] Sobre essa temática indico o maravilhoso livro A volta do filho pródigo, de Henri Nouwen, Edições Paulinas.
[20] Uma boa e divertida reflexão sobre pode ser vista no filme Durval Discos. A trilha sonora é ótima.

O que fazemos com esse evangelho?


Levi Nauter





O que estamos fazendo com o evangelho? Que tipo de sal, que tipo de luz temos sido? Por quais lugares passamos ou estamos sentados? Nosso evangelho nos ultrapassa? Chega nas pessoas desinstitucionalizadas? Nosso evangelho é o da guerra, é o do toma-lá-dá-cá, é o "venha a nós o vosso reino"? Nossas palavras aliviam o fardo e suavizam o jugo? Nossa adoração transcende a norte-americanização dos ritmos e melodias? Será que Deus não quer um louvor, hoje, ao som do maracatu, do côco, da milonga? Será que a nossa ceia - só hoje - não pode ser com o chimarrão? Nosso evangelho tem Palavra de Deus ou palavra de medalhões da publicação nacional e internacional? Será que meu culto hoje poder ser um belo passeio pelo "brique" com minha esposa ou ficar com ela, vendo um bom filme? Será que nossa Santa Ceia não tem sido um santo dia para 'bater cartão'? Será que Deus pode ser onipresente a ponto de falar comigo em meio as páginas de Vidas Secas?


Oh, que dilema: ou sigo uma nova caminhada rumo ao Prêmio Maior, esquecendo-me das coisas que para trás deixo do que me ensinaram ser o evangelho. Ou, então, sigo a opção mais fácil - a da cartilha denominacional. Particularmente tenho optado pela primeira opção. Nela tenho vivido boas aventuras com Deus, tenho descoberto Deus nas pequenas coisas, posso chorar com Ele, rir com Ele, me aventurar com Ele. Tenho, por enquanto, me negado a sexualizar com Ele, pra isso sou casado com uma mulher linda, minha âncora, 'metade de mim' com quem pretendo ter a herança do Senhor. Graças a sua misericórdia, ainda posso dizer que Ele tem me fortalecido.


Obrigado, meu Pai Celeste.

Obrigado por permitires uma novidade de vida, com temor e não medo.

Obrigado porque me entendes e me aceitas como sou.

Obrigado porque posso ser eu, sem máscara, sem biotipos, pecador, fraco.

Valeu, Pai, não sou dono da verdade. Tu és, para mim, a verdade.


Ensina-me, Senhor, a traduzir-te para a minha geração.

Ensina-me, doce Espírito, cada vez mais, a saber que sou dependente de Ti.

Te amo Deus e é muito melhor te buscar (e não caçar-Te) sem receitas, sem placas...

Como é bom ver-te na vida da minha esposa, dos meus amigos, na tua criação e na criação artístico-humana.

É bom sentir-te na verdadeira arte (cristã ou não), na beleza e, incrivelmente, na feiúra.

Ah, DEUS...


Sem palavras

[de crente pra crente] – texto 4

Levi Nauter
Quem já não ouviu o famigerado comercial das lojas Marisa que, numa certa altura, diz “de mulher pra mulher”? Ah, sim, quem nunca olhou televisão, claro. Estes supercrentes podem até deletar, rasgar este texto. Se você é um supercrente, saiba que vou escrever sobre o rádio e quem é contra a televisão tem de ser contra o rádio, para ter coerência. Afinal, tanto um quanto o outro são veículos de comunicação de massa; a diferença entre eles é óbvia e estou dispensado de ratificá-la. Ocorre que o farisaísmo está num ponto que alguns líderes fundamentalistas acham qualquer asneira como desculpa e encaixam-na num bom versículo bíblico e tudo fica nos conformes. Assim, torna-se pecado ouvir e ver bobagens pela telinha, porém, não é pecado se for pelo dial.
Na praia encontrei um amigo, pastor, teólogo e trabalhador. E por que disse trabalhador? Por que defendo que um pastor deveria trabalhar para fazer jus ao seu salário. Em minha opinião, pastor que apenas ganha da igreja não serve para o Reino de Deus, fica viciado em crentices, em crenticismos. Torna-se inútil para a sociedade e serve apenas para o inútil gueto denominacional. Claro que há exceções, há pastores que, às 8h, estão nos templos e/ou nos gabinetes pastorais; e de lá só saem por volta das 18h. Há pastores que trabalham mesmo. Ainda assim, é mais fácil encontrá-los – desculpem a falta de domínio próprio – coçando, tomando chimarrão, dando risadas e contando piadas ‘góspeis’. Esse povo deveria trabalhar no meio dos ímpios, o lugar de ‘plantação’ da igreja. Chega de termos que aturar um pastorzinho falando das dificuldades da vida tendo seu salário garantido todo ‘santo’ mês. Isso é que é inferno. Se os pastores soubessem da pressão do desemprego que, com todo o respeito, também anda rugindo ao derredor buscando quem possa tragar não mais ‘pregariam’ mensagens rickwarreanas. Provavelmente excomungariam as Cassianes e não enxergariam tanto anjo subindo e descendo escadas assim tão irreverentes no ‘culto’.
Retomando. Eu dizia que havia encontrado um amigo, pastor, teólogo e trabalhador. Tenho bastante conhecidos nessa situação. Todavia, esse, em especial, é alguém a quem admiro. Admiro-o pela coragem, por assumir claramente suas posições, e, acima de tudo, porque é um pastor pesquisador-leitor. Outros, conhecidos, não lêem nem receita médica; o sermão deriva do tempo de serviço e não da reflexão teológica. Mas de quem estou me referindo é diferente. Sua igreja-instituição possui um espaço na rádio local, à tardinha, de segunda a sábado. Decidi ouvir.
A intenção é boa. Todos os programas cristãos-evangélicos têm boa intenção. Ninguém paga um espaço semanal para potencialmente dar errado, para ninguém ouvir. O problema é: quem ouve? Qual o perfil dos ouvintes? Talvez a pergunta mais importante seja qual a intenção do programa?
A meu ver o grande problema dos programas evangélicos está na falta de definição de um foco, de um público-alvo. Como não se define, acaba que vemos uma enxurrada de programações feitas para crentes. Nesse bojo, uma série de anúncio dos eventos institucionais misturados a uma miscelânea de tentativas de evangelização. E o que ouvimos? “Hoje grande culto da família, em tal hora, em tal local”; “oferecemos o próximo hino para o pastor fulano, para seu enlevo espiritual”, entre outras frases-crentes. Ou seja, a programação não é feita para alcançar novos adeptos. Os ímpios que se danem. Se quiserem se converter terão de ficar atentos às placas que indicam: “campanha de avivamento”; “culto de libertação”; “cruzada de evangelismo” – entre outros nomes fora de contexto. Observemos, então, que as programações (de TV e/ou rádio) misturam – num espaço de meia hora – anúncios de grandes eventos, música alheia tanto aos eventos quanto ao evangelismo e uma mensagem ‘goela abaixo’ para o caso de algum ouvinte descrente – essencialmente os ‘desviados’.
Quando meu amigo perguntou o que achei do programa, respondi: “bom, mas é pra crente”. Ele fez o que poucos fazem: “como posso mudar?”. Problematizou a própria prática. Então lembrei de um livro que acabei de ler e do grande apóstolo Paulo, de quem sou um grande fã. Paulo tinha claro que o evangelho deveria ‘outrar’, isto é, deveria tornar-se o outro para, a partir daí, fazer a conversão. Nesse contexto é que faz sentido lermos 1Co 2.1, também Cl 4.5-6, bem como Fp 2.7. Além, é claro, do famoso santo camaleão
[i], 1Co 9:

19 Pois, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos para ganhar o maior número possível:
20 Fiz-me como judeu para os judeus, para ganhar os judeus; para os que estão debaixo da lei, como se estivesse eu debaixo da lei (embora debaixo da lei não esteja), para ganhar os que estão debaixo da lei;
21 para os que estão sem lei, como se estivesse sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo), para ganhar os que estão sem lei.
22 Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns.
23 Ora, tudo faço por causa do evangelho, para dele tornar-me co-participante.


Paulo nunca deixou de ser o que era, mesmo usando de boas estratégias, para ganhar pessoas ao Reino de Deus. O próprio Cristo deu-nos uma preciosa dica em Mt 10.16: estaríamos no meio de lobos e deveríamos ficar espertos, de olhos bem abertos.
Em relação ao livro que li, Cristianismo com a cara do Brasil, de Reinaldo Rocha
[ii], temos boas propostas para contextualizarmos o evangelho de Cristo. Se nascemos neste país é a partir dele que temos de ganhar vidas para o Reino. É necessário, portanto, contextualizar o que dizemos. Precisamos parar de fazer a confusão nos programas de rádio e televisão. Não é possível querer evangelizar, dar recadinhos, ouvir músicas fora da temática a ser abordada no sermão. Temos de focalizar mais nossos objetivos. De um lado, será inútil optarmos por uma programação de crente pra crente – só crentes e ‘desviados’ ouvirão; crentes, para saberem aonde haverá um festejo, quem estará fazendo a preleção, quem cantará, os ‘desviados’serão sutilmente atormentados pelos crentes para ouvirem a ‘palavra de deus’. Mas, de outro lado, se a opção for uma programação para descrentes tudo deverá mudar: as músicas deverão ter cunho evangelístico e não de louvorzão-festerê; todo o discurso terá que se dirigir ao descrente e, assim, a linguagem deverá ser outra.

O apresentador do programa que ouvi por uma semana não tinha um foco definido. Por isso, às vezes, eu tinha a sensação de que estava num templo, tal era a quantidade de aleluias e améns que ouvia. De repente, a música começava a pedir para Deus ‘incendiar’; outro cantor dizia que queria beijar, abraçar, tocar e sentir ELE. Quer dizer, letras completamente alheias ao evangelismo, com sentido ambíguo, que carecem de pessoas que tenham uma boa e sólida caminhada de fé. Quem não tem essa caminhada fica perdido. A mensagem, o sermão, logo em seguida, fazia uma abordagem histórica complexa que, mais uma vez, deixava o ouvinte ‘boiando’.
Quero deixar bem claro que não vejo problemas nisso acontecer. Aliás, é só o que acontece. A questão é termos clareza do público-alvo: queremos chegar nos crentes ou descrentes? Se a opção for aos crentes estamos indo bem, apesar do mal gosto na programação. Já se quisermos alcançar os descrentes, teremos de ler incessantemente a Bíblia, obras afins e sairmos para a rua. Teremos que conversar com não cristãos, com aqueles que não aceitam qualquer coisa, com os que nos desafiam, mexem com nossas supostas bases teológicas de crença. Teremos de nos apropriar das suas particularidades, suas gírias a fim de, com elas, buscarmos a conversão do nosso público. Não será a indumentária a salvar. Não serão cânticos recheados de mântras que converterão. A obra certamente é do Espírito Santo. Nós seremos os canais, os – por assim dizermos – tradutores dessa gloriosa boa nova. Por enquanto não estamos traduzindo nada.
Por ora, as programações cristãs de rádio – com pouquíssimas exceções – servem ao próprio umbigo das denominações. Alguns apresentadores têm seus momentos de catarse de uma profissão que gostariam de terem. As músicas representam, em poucos casos, uma vivência da igreja-instituição como fruto de uma caminhada que, evidentemente, o descrente não a tem. Ora, essa é a razão de a música ter que ser mais selecionada, mais dirigida ao evangelismo. O linguajar deve ser mais cuidado. Abaixo os aleluias de cinco em cinco segundos (cacoete dos mais terríveis) ou dos améns que em nada acrescentam ao sermão. Que haja mais leitura de mundo e da palavra (com “p” minúsculo para obras literárias diversas, e “P”maiúsculo pala a Bíblia), mais contato com os descrentes. Eles não mordem e podem dar grandes sugestões de pauta.
Pra finalizar, transcrevo um trecho da obra de Reinaldo Rocha (págs. 11 e 12) para a nossa reflexão que, espero, não acaba aqui.
"Com facilidade, recomendamos a parentes e amigos um novo restaurante ou uma desconhecida cidade turística. Contudo encontramos dificuldade quando pretendemos apresentar nosso melhor Amigo a eles.
Possuímos dentro de nós um tesouro de valor incalculável. Geralmente ele fica confinado, porque não encontramos uma forma agradável de compartilhá-lo com nosso próximo. (...)
Será, porém, que estamos em sintonia com as estruturas de pensamento e com os códigos que marcam o microcosmo secular em que vivemos?"


Pensemos e mãos à obra.








[i] Não custa lembrar que ‘santo camaleão’ não deve ser entendido literalmente. Refiro-me que temos de mudar as estratégias e não o que somos.
[ii] Reinaldo Rocha, Cristianismo com a cara do Brasil, Editora Betânia, Belo Horizonte, 2002.

Outro texto que gostaria de ter escrito

Abaixo, mais um texto de quem admiro. Agora é Bráulia Ribeiro, missionária da JOCUM. O texto é ‘mergulhado’em brasilidade e não possui os ranços evangélicos comuns em alguns autores. Vale a pena, após a leitura, realmente refletirmos. Vamos lá.


SOBRE MÚSICA DO MUNDO E MÚSICA DO (SUB, SOBRE, EXTRA, FORA, EX, PARA OUTRO?) MUNDO – de Bráulia Ribeiro – publicado na Revista Ultimato.



Conheci pessoalmente o Don Richardson, missionário na Papua Nova Guiné, autor do best seller O Totem da Paz. Homem humilde, amigo e que honra o trabalho que nós brasileiros fazemos entre os índios do Brasil. Certa vez, numa entrevista particular, meu marido lhe perguntou: “Se você tivesse de começar de novo, o que faria de diferente no seu ministério entre os sawis?” Uma pergunta delicada, na verdade um eufemismo para: “Qual foi o grande erro que você cometeu e que não repetiria se tivesse uma nova oportunidade?”Ele pensou, pensou, o que foi um bom sinal. Para um homem com um ministério tão bem-sucedido, mundialmente conhecido, deve ter sido difícil lembrar de algum erro... Finalmente ele disse: “Duas coisas: primeiro, eu não teria traduzido corinhos da igreja indonésia para a igreja sawi; segundo, teria usado dramas em vez de pregação falada para ensinar o evangelho”.Pode parecer pouco para os não-iniciados, mas para os que são da área, foi a admissão de um grande erro. Ele estava dizendo que teria introduzido o evangelho numa forma cultural sawi e não na forma estrangeira. A maneira de cultuar e pregar usada pelos sawis, 70% dos quais são cristãos, é estrangeira. Eles louvam da forma indonésia. Talvez até saibam cantar “Sim, Deus é bom” na sua própria língua.Vamos sempre em cultos missionários, tristes a meu ver, quando se canta “Yes, God is good”, “Sim, Deus é bom”, e por aí afora em muitas línguas, com uma alegria burra, crendo-se que o grande propósito de Deus para o universo humano é formar na terra uma imensa e uniforme igreja evangélica.O erro que Don cometeu também cometeram os que primeiro nos pregaram o evangelho. E continuamos cometendo, nós, líderes cristãos do Brasil de hoje. No último encontro nacional de JOCUM — que se crê vanguarda e às vezes é mesmo vanguarda em alguns aspectos — na frente de quase mil jovens, liderando uma reunião, pedi que a equipe de louvor tocasse “Velha Infância”, dos Tribalistas, para louvarmos a Deus com intimidade. Minha sorte foi que muitos dos líderes presentes não souberam que fui eu que encomendei a música (acho que vão ficar sabendo agora), senão provavelmente eu teria sido proscrita da função de presidente nacional poucas horas depois de ter assumido. Ao mesmo tempo em que a música trouxe um espírito doce e especialmente terno para toda a platéia, e encheu de alegria a boca e o coração dos jovens presentes, a casa caiu para o líder de louvor, e ele teve de enfrentar muitas caras feias até o último dia...Quando prego em congressos, gosto de tocar “Um Índio”, de Caetano Veloso, e “Maria Maria”, do Milton, que considero músicas essenciais no entendimento de nossa identidade brasileira. Infelizmente nosso “Jesus” evangélico não é brasileiro. Ele é internacional, e por internacional leia-se americano-europeu do norte. Este “Jesus” fala inglês, louva medievalmente para algumas denominações e hosana-music-vineyardmente para outras. Mas, como um religioso fariseu, coloca-se sempre à parte da cultura, acima dela, desprezando-a completamente em vez de restaurá-la, redimi-la, legitimá-la, comunicando-se com ela. Este “Jesus” fariseu-evangélico ora pelas praças usando shofares (o que é isto?), proclamando-se santo e desprezando tudo e todos ao seu redor. Fala num jargão de gueto cultural, comunica-se apenas com seus “iniciados” e sua mensagem é obsoleta e irrelevante para a população em geral.Um dia, numa conferência, ouvi um pastor repreender em nome de Jesus “a cultura africana de nosso meio”. Coisa triste. Não me admira que na Bahia cresça tanto o número de negros que buscam sua legitimação étnica no candomblé. Formas culturais, danças, músicas não são pecadoras ou santas em sua essência. São formas, vasilhas, caixas na qual se depositam as bênçãos de Deus, ou as maldições... Na mesma conferência me deram 20 minutos para dizer algo. Num acesso de loucura pintei a cara de índia e disse que ainda veria o mesmo povo louvando ao som de centenas de tambores baianos numa timbalada poderosa e santa. Queixos se deslocaram do lugar, cabelos se arrepiaram de horror, mas inúmeras pessoas se sentiram “misteriosamente” livres para amarem quem são, suas músicas, suas danças, curtirem MPB e dançarem danças africanas em homenagem ao Deus que criou todos os povos.Baby do Brasil, numa conferência em abril, me disse que viu, pentecostalmente falando, o Espírito de Deus de maneira maravilhosa ungir a música “Brasileirinho” e centenas de pastores do G-12 dançarem enlouquecidos ao som do chorinho-símbolo do Brasil... É o fim dos tempos? Além de G-12mente “heréticos”, esses pastores agora também se “secularizaram” de maneira perigosa? Ou será que a revelação de que Deus ama a nós, brasileiros, como somos, em todas as nossas manifestações culturais, está chegando até os segmentos mais inesperados do evangelho no Brasil?Fico com a última opção. Deus é amor. Não é fariseu, exclusivista, preconceituoso, racista. E, além de tudo, só nós ainda não sabemos...
Deus é brasileiro.

ESTOU CANSADO - ah, como eu - Levi - gostaria de ter escrito

Eu gostaria muito de ter escrito o texto, abaixo, do instigante pastor Ricardo Gondim. Postei-o obviamente porque tem a ver com o que penso. Mais que isso, devido o farisaismo reinante nas instituições religiosas é melhor ele falar do que eu. Eu não possuo títulos, nem estou preocupado com isso. Mas a instituição está. O pastor Gondim possui títulos. Eu falando sou execrado, com ele é diferente. Portanto, leiamos.
ESTOU CANSADO - Ricardo Gondim - publicado na Revista Ultimato
Cansei! Entendo que o mundo evangélico não admite que um pastor confesse o seu cansaço. Conheço as várias passagens da Bíblia que prometem restaurar os trôpegos. Compreendo que o profeta Isaías ensina que Deus restaura as forças do que não tem nenhum vigor. Também estou informado de que Jesus dá alívio para os cansados. Por isso, já me preparo para as censuras dos que se escandalizarem com a minha confissão e me considerarem um derrotista. Contudo, não consigo dissimular: eu me acho exausto.Não, não me afadiguei com Deus ou com minha vocação.
Continuo entusiasmado pelo que faço; amo o meu Deus, bem como minha família e amigos. Permaneço esperançoso. Minha fadiga nasce de outras fontes.Canso com o discurso repetitivo e absurdo dos que mercadejam a Palavra de Deus. Já não agüento mais que se usem versículos tirados do Antigo Testamento e que se aplicavam a Israel para vender ilusões aos que lotam as igrejas em busca de alívio. Essa possibilidade mágica de reverter uma realidade cruel me deixa arrasado porque sei que é uma propaganda enganosa. Cansei com os programas de rádio em que os pastores não anunciam mais os conteúdos do evangelho; gastam o tempo alardeando as virtudes de suas próprias instituições. Causa tédio tomar conhecimento das infinitas campanhas e correntes de oração; todas visando exclusivamente encher os seus templos. Considero os amuletos evangélicos horríveis. Cansei de ter de explicar que há uma diferença brutal entre a fé bíblica e as crendices supersticiosas.Canso com a leitura simplista que algumas correntes evangélicas fazem da realidade. Sinto-me triste quando percebo que a injustiça social é vista como uma conspiração satânica, e não como fruto de uma construção social perversa. Não consideram os séculos de preconceitos nem que existe uma economia perversa privilegiando as elites há séculos. Não agüento mais cultos de amarrar demônios ou de desfazer as maldições que pairam sobre o Brasil e o mundo.Canso com a repetição enfadonha das teologias sem criatividade nem riqueza poética. Sinto pena dos teólogos que se contentam em reproduzir o que outros escreveram há séculos. Presos às molduras de suas escolas teológicas, não conseguem admitir que haja outros ângulos de leitura das Escrituras. Convivem com uma teologia pronta. Não enxergam sua pobreza porque acreditam que basta aprofundarem um conhecimento “científico” da Bíblia e desvendarão os mistérios de Deus. A aridez fundamentalista exaure as minhas forças.

Canso com os estereótipos pentecostais. Como é doloroso observá-los: sem uma visitação nova do Espírito Santo, buscam criar ambientes espirituais com gritos e manifestações emocionais. Não há nada mais desolador que um culto pentecostal com uma coreografia preservada, mas sem vitalidade espiritual. Cansei, inclusive, de ouvir piadas contadas pelos próprios pentecostais sobre os dons espirituais.Cansei de ouvir relatos sobre evangelistas estrangeiros que vêm ao Brasil para soprar sobre as multidões. Fico abatido com eles porque sei que provocam que as pessoas “caiam sob o poder de Deus” para tirar fotografias ou gravar os acontecimentos e depois levantar fortunas em seus países de origem.Canso com as perguntas que me fazem sobre a conduta cristã e o legalismo. Recebo todos os dias várias mensagens eletrônicas de gente me perguntando se pode beber vinho, usar “piercing”, fazer tatuagem, se tratar com acupuntura etc., etc. A lista é enorme e parece inexaurível. Canso com essa mentalidade pequena, que não sai das questiúnculas, que não concebe um exercício religioso mais nobre; que não pensa em grandes temas. Canso com gente que precisa de cabrestos, que não sabe ser livre e não consegue caminhar com princípios. Acho intolerável conviver com aqueles que se acomodam com uma existência sob o domínio da lei e não do amor.Canso com os livros evangélicos traduzidos para o português. Não tanto pelas traduções mal feitas, tampouco pelos exemplos tirados do golfe ou do basebol, que nada têm a ver com a nossa realidade. Canso com os pacotes prontos e com o pragmatismo. Já não agüento mais livros com dez leis ou vinte e um passos para qualquer coisa.
Não consigo entender como uma igreja tão vibrante como a brasileira precisa copiar os exemplos lá do norte, onde a abundância é tanta que os profetas denunciam o pecado da complacência entre os crentes. Cansei de ter de opinar se concordo ou não com um novo modelo de crescimento de igreja copiado e que vem sendo adotado no Brasil.Canso com a falta de beleza artística dos evangélicos. Há pouco compareci a um show de música evangélica só para sair arrasado. A musicalidade era medíocre, a poesia sofrível e, pior, percebia-se o interesse comercial por trás do evento. Quão diferente do dia em que me sentei na Sala São Paulo para ouvir a música que Johann Sebastian Bach (1685-1750) compôs sobre os últimos capítulos do Evangelho de São João. Sob a batuta do maestro, subimos o Gólgota. A sala se encheu de um encanto mágico já nos primeiros acordes; fechei os olhos e me senti em um templo. O maestro era um sacerdote e nós, a platéia, uma assembléia de adoradores. Não consegui conter minhas lágrimas nos movimentos dos violinos, dosoboés e das trompas. Aquela beleza não era deste mundo. Envoltos em mistério, transcendíamos a mecânica da vida e nos transportávamos para onde Deus habita. Minhas lágrimas naquele momento também vinham com pesar pelo distanciamento estético da atual cultura evangélica, contente com tão pouca beleza.Canso de explicar que nem todos os pastores são gananciosos e que as igrejas não existem para enriquecer sua liderança. Cansei de ter de dar satisfações todas as vezes que faço qualquer negócio em nome da igreja. Tenho de provar que nossa igreja não tem título protestado em cartório, que não é rica, e que vivemos com um orçamento apertado. Não há nada mais desgastante do que ser obrigado a explanar para parentes ou amigos não evangélicos que aquele último escândalo do jornal não representa a grande maioria dos pastores que vivem dignamente.Canso com as vaidades religiosas. É fatigante observar os líderes que adoram cargos, posições e títulos.
Desdenho os conchavos políticos que possibilitam eleições para os altos escalões denominacionais. Cansei com as vaidades acadêmicas e com os mestrados e doutorados que apenas enriquecem os currículos e geram uma soberba tola. Não suporto ouvir que mais um se auto-intitulou apóstolo.Sei que estou cansado, entretanto, não permitirei que o meu cansaço me torne um cínico. Decidi lutar para não atrofiar o meu coração.Por isso, opto por não participar de uma máquina religiosa que fabrica ícones. Não brigarei pelos primeiros lugares nas festas solenes patrocinadas por gente importante. Jamais oferecerei meu nome para compor a lista dos preletores de qualquer conferência. Abro mão de querer adornar meu nome com títulos de qualquer espécie. Não desejo ganhar aplausos de auditórios famosos.Buscarei o convívio dos pequenos grupos, priorizarei fazer minhas refeições com os amigos mais queridos. Meu refúgio será ao lado de pessoas simples, pois quero aprender a valorizar os momentos despretensiosos da vida. Lerei mais poesia para entender a alma humana, mais romances para continuar sonhando e muita boa música para tornar a vida mais bonita. Desejo meditar outras vezes diante do pôr-do-sol para, em silêncio, agradecer a Deus por sua fidelidade. Quero voltar a orar no secreto do meu quarto e a ler as Escrituras como uma carta de amor de meu Pai.Pode ser que outros estejam tão cansados quanto eu. Se é o seu caso, convido-o então a mudar a sua agenda; romper com as estruturas religiosas que sugam suas energias; voltar ao primeiro amor. Jesus afirmou que não adianta ganhar o mundo inteiro e perder a alma. Ainda há tempo de salvar a nossa.
Soli Deo Gloria.

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Maria Flor

Sobre este blog

Para pensar e refletir sobre o cotidiano de um cristianismo que transcende as quatro paredes de um templo.


"Viver é escolher, é arriscar-se a enganar, aceitar o risco de ser culpado, de cometer erros" [Paul Tournier]

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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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