resenha 08-1 - LOUVOR QUE LIBERTA


Levi Nauter




Acabo de ler um livro (esse não merece ser chamado de obra) que há muito buscava. Uma publicação antiga, de 1976, que meus amigos não possuíam para me emprestar. Trata-se de Louvor que liberta, do Capelão Merlin R. Carothers, publicado pela Edições Loyola. Tê-lo nas mãos foi uma bela surpresa. Principalmente pela forma como ele me chegou. Estava numa biblioteca pública onde sou sócio e, de repente, fui dar uma espiada numa espécie de balaio de obras, por assim dizermos, descartadas pela bibliotecária – ou por quem seleciona o acervo.
Terminada a leitura, se pudesse, parabenizaria quem fez isso.
O título do livro sempre chamou minha atenção. Libertação é um tema que faz parte de minhas leituras, essencialmente ligadas à educação, área em que atuo profissionalmente. Considero que ao mesmo tempo em que libertamos o outro vamo-nos (re)libertando de outras prisões – algumas conscientes, outras nem tanto. Continuo considerando que o louvor liberta, sim. Ele é uma poderosa arma contra a opressão diabólica, mas também contra a opressão religiosa. Penso que o louvor liberta justamente por nos pôr em contato direto com Deus, sobretudo, um contato na forma primária da criação: fomos feitos para o Seu louvor. Mas há um hiato considerável entre o que penso sobre louvor e o que o autor da obra em questão acha. Para mim, louvor sempre extrapola a música e o agradecimento, sempre transcende convenções humanas.
Para Carothers, louvor está muito mais para confiar passiva e acriticamente em Deus, ou seja, prega-se – nas entrelinhas – o fatalismo. Essa é a razão da minha aversão ao livro. Mas tem mais.
Tal como muitos outros livros, esse não tem nenhuma relevância ao cristianismo. Os oito capítulos simplesmente relatam as peripécias do autor antes e depois de sua conversão. Pior que isso, as aventuras de Merlin como não-cristão são mais interessantes do que os auto-elogios discorridos ao longo de aproximadamente oitenta e nove páginas. Talvez ainda mais massante seja uma nem tão velada pretensão de conversar téte-a-téte com o Todo-Poderoso. Este, pois, é quem vai dando as ordens ao capelão supercrente. Entre elas o ‘louvor passivista’ (não confunda com pacifista). A partir daí é que vamos lendo uma série de coisas como [segundo o autor, o próprio Deus falou enquanto seu automóvel apresentava problemas]: “Filho, eu queria que você soubesse que nunca deve temer que alguém possa se aproveitar de você. (...) eu resolvo todos os pequenos problemas da vida.” (p. 68)
Na página seguinte, mais uma: [Deus, segundo o autor] “Por que não experimenta louvar-me pela dor de cabeça? (...) Comecei a elevar meus pensamentos a Deus em ação de graças porque Deus estava me dando aquela dor de cabeça...”. na página 71 o autor titubeia sobre a cura para uma senhora e logo tenta se recuperar. Acompanhemos:
“Mas Deus me curou, insisti.
“Então, por que está fungando?
“Não sei, mas Deus sabe, e eu o louvo por isso”. (p. 71)
As citações até aqui são do sétimo capítulo no qual ele diz que Deus falava diretamente com seu espírito. O oitavo capítulo é uma continuação dessas conversas com Deus – só que agora para com outras pessoas. Então o encontramos dando conselhos para a mulher de um soldado que iria para a Guerra: “- agradeça a Deus!” (pp. 72-76), entre outros exemplos que mais parecem para aparecer do que compartilhar sobre louvor.

Há outras inconveniências no livro. Ele me pareceu mal traduzido, como é antigo talvez valha um perdão. Porém, ideologicamente é triste. No quarto capítulo o autor demonstra preconceito com as mulheres ao desconfiar que Deus possa usá-las (p. 35). No final do capítulo (p. 38) faz algo pior (muito comum em alguns animadores de circo travestidos de ‘ministros de louvor’): “olhei para a querida irmã com quem momentos antes tinha antipatizado e compreendi que a amava.” Bela falácia. Há preconceito étnico, quando o autor diz, sem rodeios: “perto do oficial estava um sargento de cor” (p. 53). Não é possível não falar de uma arrogância que também assola muita liderança igrejeira que se sente acima de qualquer suspeita. Carothers não fugiu a regra e tasca sua pseudosuperioridade: “sentia um mal-estar quando estava perto de certas pessoas. Orei a respeito e recebi uma forte impressão de que o que havia de errado com elas era de natureza demoníaca.” (p. 86)

O que mais me impressionou negativamente foi seu discurso bélico. A apresentação do livro deixa essa intenção bem clara. “Este livro relata a história do Cel. Carothers, que de jovem rebelde chegou a capelão do Exército dos Estados Unidos...”. Lamentável, profundamente lamentável considerar-se que ser capelão daquele exército seja uma bênção; admitiria que seja um bom emprego, e só. Mas o discurso norte-americano é belicoso por natureza. E nas páginas iniciais isso fica claro, recheado com inutilidades. Senão vejamos dois exemplos:
[de inutilidade] “Meu trabalho era aparar e esmerilhar aço. Não era muito agradável, mas ajudou-me a conservar a forma física. Estar em boas condições f~isicas significava estar capacitado para a corrida deste mundo a qual eu não queria perder por nada.” (p. 10)

[belicosidade] “Queria entrar em ação na guerra, e quanto mais perto da linha de fogo, melhor (...) Pelo modo como as coisas iam, calculei que ia perder o bom da coisa, e ficar lavando panelas até o fim da guerra.” (p. 11)


Parece haver uma proposital acriticidade quanto ao resto do mundo, quanto aos nefastos resultados de uma guerra. Isso não importa, para os supercrentes americanos (do norte, da América) Deus está com eles. O resto é do diabo, é inimigo. Muito bem afirma o uruguaio Eduardo Galeano
[1], há um teatro do bem e do mal. E nessa, o bem é sintetizado pela sigla EUA e o mal é todo o resto. O sexto capítulo é a consagração de que o livro não presta. “Vietnam” (sic) é o título.
Carothers descreve uma série de conversões a bordo do navio que seguia para o Vietnã. Orações, estudos bíblicos, testemunhos e outras pirotecnias estão descritas para enlevar a sabedoria americana e para demonstrar o quanto Deus estava com eles. Paradoxalmente, o Deus da paz nunca questionou por profecia ou profetada aquela Guerra. O Deus da paz estava mais interessado no mundinho da América. O capelão estava como queria “no grosso da batalha, junto com os fuzileiros” (p. 57). Deus se confundiu com o ‘american dreams’. “Várias vezes vi evidências da mão de Deus protegendo seus filhos. Quando confiamos nele, nenhuma força da terra pode tocar-nos se não for da sua vontade”. (p. 57 – grifo meu).
Com Carothers, Deus tornou-se americano. Resta-nos nessa perspectiva o sofrimento eterno, o pranto, o ranger de dentes, ler livros de autores norte-americanos dando-nos receitas; resta-nos dizer “tende piedade de nós assim como tens com os americanos”.
Termino com o triunfo do bem sobre o mal. Mal aqui são os vietcongs.

“...o major conseguiu controlar-se e contou-me uma história surpreendente.
Algumas horas antes ele estivera a bordo de um helicóptero, o qual fora atingido por artilharia anti-aérea e caíra na floresta. Os seis homens haviam sido atirados longe, na encosta de uma colina. Quando voltou a si, o major viu que estava ferido demais para se mover. À distancia ouviu tiros de rifle. Os vietcongs estavam se aproximando da área onde tinham visto o helicóptero cair. Estavam chegando para capturar os americanos.
De repente, o major compreendeu que aquilo era o fim. Os inimigos não iriam carregar americanos feridos. Iriam provavelmente torturá-los até a morte. (...) Numa explosão de angústia e com uma fé nova clamou: “Ó Deus, por favor, ajuda-me!” Percebeu que pela primeira vez em sua vida havia conversado com Deus. Contudo, ainda ouvia os vietcongs se aproximando.” (p. 59 – grifos meus)

A história termina com os americanos sendo salvos por outro helicóptero (quiçá divino) e os vietcongs (os diabólicos) atirando nos queridos. Ao chegarem à base salvos, o major disse querer servir a Deus por toda a sua vida (p. 60). Provavelmente serviu ao exército americano da salvação.

Terminei a leitura com muita raiva. E quando reli a introdução decidi colocá-lo na lata do lixo, após encontrar a seguinte propaganda (na p. 7): “Chegou a ocupar o primeiro lugar entre os best-sellers evangélicos nos Estados Unidos. (...) Só houve uma coisa para recomendá-lo aos possíveis leitores – o conteúdo.”
Definitivamente, se conselho fosse bom não se daria.






[1] GALEANO, Eduardo. O teatro do bem e do mal. Trad. de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 2006

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LEVI NAUTER DE MIRA, doutorando em educação (UNISINOS), mestre em educação (UNISINOS) e graduado em Letras-português e literatura (ULBRA). Tenho interesse em livros de filosofia, sociologia, pedagogia e, às vezes, teologia. Sou casado com a Lu Mira, professora de História, e pai da linda Maria Flor. Adoramos filmes e séries.

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