Levi Nauter
Não sei se, como diz o provérbio,
as coisas repetidas agradam, mas creio que, pelo menos, elas significam.
Roland Barthes
Ainda estão bem vivas na minha memória as reuniões de que participei visando ao aperfeiçoamento da minha pequena carreira musical-evangélica. Isso denuncia que estou pendendo mais para a velhice. A paternidade precoce (bem antes de termos a Maria Flor eu já me sentia como uma espécie de futuro pai) parece ter jogado alguns anos a mais na minha idade. Gosto da idade que tenho, ela me deu muita história para contar.
as coisas repetidas agradam, mas creio que, pelo menos, elas significam.
Roland Barthes
Ainda estão bem vivas na minha memória as reuniões de que participei visando ao aperfeiçoamento da minha pequena carreira musical-evangélica. Isso denuncia que estou pendendo mais para a velhice. A paternidade precoce (bem antes de termos a Maria Flor eu já me sentia como uma espécie de futuro pai) parece ter jogado alguns anos a mais na minha idade. Gosto da idade que tenho, ela me deu muita história para contar.
Eu dizia das reuniões de aperfeiçoamento musical. Já li muito a respeito. Confesso que agora ando desatualizado, as publicações são mais rápidas que minha capacidade leitora. Ademais, também como reflexo da idade, tornei-me exigente e poucas obras responderam aos meus questionamentos. Tenho optado por ler autores não cristãos e mais “abrasileirados”: José Ramos Tinhorão, Paulo Tatit, José M. Wisnik, são alguns exemplos. Com estes, caminho mais perto do que chamo de arte. Seria um desaforo, contudo, não citar os cristãos que também veem a música como arte. O perfeccionista Michael Card, bem como o Rory Noland – para ficar em dois. Tais nomes recém citados nunca foram objetos de reflexão nesses encontros de adoração e louvor – nem como referenciais, nem como contraponto. Como perdemos artística, intelectual e espiritualmente.
Fui enfarado, no entanto, com um tema: as mensagens subliminares. Sobre elas quero falar e propor algumas perguntas. Se alguém quiser respondê-las, sinta-se à vontade.
Era um domingo. Quatorze horas. Sol escaldante. O templo estava repleto de instrumentistas e vocalistas (para mim ambos são músicos e podem ser muito bons ou muito ruins no que fazem; a disparidade, tanto de técnica quanto de talento, pode desqualificar um ou outro). No que se chamava de púlpito, um toca-discos; ao lado, uma mesa repleta de ‘vinis’ (outro reflexo da minha idade: na época não havia o CD). Lá via-se Rebanhão, Roberto Carlos, Alceu Valença e eles, os Menudos. É interessante notar que não fazia parte dos vinis a serem ‘auditados’ os considerados sacros ou santos da época: Otoniel e Oziel, Matheus Iensen, Curió e Canarinho, entre outros. O que merecia a desconfiança eram os ‘roqueiros cristãos’. Desconfio que pouca coisa mudou.
Começou a reunião, obviamente chamada de ‘culto de louvor’. O responsável explicou as razões de um evento especial como aquele: “tomar cuidado com o que estamos escutando em casa, no carro e/ou no trabalho”. Disse que mensagem subliminar era, naquele contexto, o que se ouvia quando um vinil rodava no sentido anti-horário. Enquanto ele falava, outra pessoa ficava preparando o toca-discos. A plateia, apreensiva, nem piscava tal o apavoramento que a fala inicial causara. Todos queriam saber o que ocorria quando alguém – sem mais nem menos – decidia rodar um disco no sentido contrário.
Muita coisa eu não lembro (a mente é sábia). Não recordo o que dizia o LP do Rebanhão ao contrário, nem faço esforço para tanto. Basta-me lembrar da sempre atual “eu quero voltar ao primeiro amor”. Do Roberto Carlos foi escolhida “a guerra dos meninos” (Hoje eu tive um sonho, foi o mais bonito; que eu sonhei em toda a minha vida...). Do Alceu Valença escolheram “tu vens” (Na bruma leve das paixões que vem de dentro; tu vens chegando pra brincar no meu quintal). Diabolizaram terrivelmente cada uma dessas músicas, além de seus intérpretes e compositores, claro. Já não me vem a mente o conteúdo subliminar.
Para minha tristeza, a música que me fazia ter sucesso entre as gurias foi uma das escolhidas. No recreio, meu jeito de divertir era cantando “não se reprima”, dos Menudos. Pois a mensagem subliminar era “satanás vive”, em vez de “não se reprima”. Meu mundo desabou. O que eu faria para continuar ‘encantando’? Ficava conjeturando sobre o que estaria por trás de uma outra música dos costarriquenhos: “quando o sol nascer será a hora/ triste mais eu tenho que partir..”. Arranjei outra saída. Comecei a canta “wisky a gogo”. Esta não constava do casting das diabólicas. Vai ver a música não louvava o diabo ou, de tão boa, ninguém queria arriscar saber o que estava nas entrelinhas.
Os tempos são outros. Claro que ainda há os caçadores de coisas ruins, mas eles estão mais escassos. Os desenhos animados, até bem pouco tempo, eram o alvo. Ninguém parou de ver desenhos – ainda bem. Então os tais apelaram para a diabolização das logotipias. Lembro de certa vez, quando fiz campanha aberta ao PT. Alguém me disse: “notaste que o “v” da vitória, colocando-s um risco em baixo, torna-se um triângulo e o triângulo tem a ver com a Nova Era?”. Depois foi a vez de algumas marcas: “você sabia que o estilista tal e o marqueteiro fulano fizeram pacto com o capeta?”.
Agora eu decidi caçar os ungidos. Na verdade, tenho coisa mais útil a fazer, não sem antes refletir sobre o que se imagina não ter um discurso de entrelinhas. Pois aí está: em tudo há – aceitemos ou não – um discurso.
Outro dia liguei a TV e um pastor, que jura ser possível semear fogo, estava dublando uma música dita cristã. Não consigo achar digna de meu canto uma canção que faz de Deus um escravo. O cabra cantava “restitui, eu quero de volta o que é meu...”. Que deusinho, não?
Outro programa de TV propagandeou um cantor bela pinta, que chora no palco, toca violão e que, por sorte, faz poucas versões. Ele canta a seguinte música:
Se atentamente ouvir a Deus
E os mandamentos seus
Obedecer
O Senhor meu Deus me exaltará
Sobre todas as nações onde eu passar
Eu não correrei atrás de bênçãos
Sei que elas vão me alcançar
Onde eu colocar a planta dos meus pés
Sei que a sua benção chegará
Notemos a mensagem subliminar. Com um detalhe: não é necessário nem rodar o CD ao contrário. Basta retornar ao trecho acima e ler apenas o que está em itálico. Ou seja, “Se atentamente ouvir a Deus e obedecer / o Senhor meu Deus me exaltará/ Eu não correrei atrás de bênçãos elas vão me alcançar / Onde eu colocar dos meus pés / a benção chegará”.
A música – cantada em momentos de êxtase – parece inofensiva. Mal percebemos a condicional inicial: se. A música começa com o “se”. dito de outra forma, Deus tornou-se aqui um mero recompensador: se fizer isso, ganhará aquilo. Essa é a pior visão divina possível. Deus não é assim. Qualquer música que repasse uma visão dessas está trabalhando contra o Reino. A sorte de pessoas que compõem isso é a acriticidade da grande massa consumidora. É preciso registrar que a música promete outra falácia, que só bênçãos nos chegará. Engraçado que Cristo diz que no mundo teríamos aflições.
Por que não se questionam músicas de auto-ajuda que estão sendo cantadas por aí? Por que não nos engajamos numa campanha com a finalidade de parar de adquirir produtos com esses conteúdos? Por que não mais criticidade – por exemplo, não chamar isso de arte? Que tal ouvirmos mais músicas ‘do mundo’ a essas coisas que andam rodando e dando lucro ($), bênçãos, só para eles?
Quem tem ouvidos (e coragem) que ouça.
1 comentários:
Oi, Levi!
Não sei se a questão é bem falta de criticidade. Claro, há falta de criticidade tbm. Mas, pior que isso me parece ser o desejo por essas músicas, o desejo por esse condicional "se", o desejo de ter um pocket-deus com o qual se possa negociar e obter tudo de bom.
Pior que não questionar e não refletir é desejar a barganhar e suprir a velha e má cobiça que desde o início nos faz cair. :/ "Se Deus me der o que eu quero, não preciso nem pensar, compro o pacote inteiro." Afinal, que sinal maior de bênção do que obter aquilo que se pede?! Pobres profetas endemoninhados do VT. Eles só se lascavam.
Postar um comentário