Imagino que, em pleno Século XXI, todos sabem que é possível e, por vezes, há manipulação, dominação, controle e abuso espiritual nas igrejas (estamos falando de instituição, sem descartar a ocorrência no corpo) - não necessariamente nessa ordem. Esse mal é facilmente detectado nas mais diversas denominações, a partir dos discursos de seus líderes. Uma característica que deveríamos começar a observar são lideranças que dizem, sem nenhum pudor, “eu te abençôo”, “eu libero perdão”, eu isso, eu aquilo. Cristo parece estar, obrigatoriamente, encarnado em homens que têm se intitulado apóstolos, reverendos, bispos, semi-deuses, sub-espírito santo – alguma coisa do tipo nem tão acima de Deus nem tão pra perto do diabo. Essa gente anda dominando crentes. Graças a esse pessoal, vemos pessoas com menos poder de crítica e/ou análise sendo engodadas e repetindo: “mas o irmão fulano falou; ele é um homem de Deus”. Incrivelmente esse mesmo pessoal está mais preocupado em encher templos, arrecadar muito dinheiro, enriquecer e montar programas de entretenimento gospel (grupos de dança, grupos de teatro, grupos de ação social, camisetas, canecas, agendas e todo tipo de parafernália que, ao mesmo tempo, perpetue a ideologia e traga rendimentos financeiros).
Esse foi o tema de dois livros que li nos saudosos dias de férias. Minha tentativa, a seguir, será resenhá-los.
A primeira obra, Manipulação, dominação e controle, de Yinka Oyekan[1], foi difícil de ser lida. Difícil porque o autor edimbuguense possivelmente lê autores que gostam de receitar. Partindo do princípio que nossas vivências e leituras vão formando-nos, justifica-se essa característica ao longo das páginas. O que, para meu gosto, é, no mínimo, desestimulante. Contudo, tenho tentado seguir o conselho do apóstolo (esse sim) São Paulo: “retenha o que é bom”[2]. Nessa linha de pensamento é que foi possível descobrir algumas interessantes recomendações anti manipulação.
O prefácio é um incentivo à leitura. Colin Urquhar, a uma certa altura, registra que
Um dos maiores empecilhos para o cumprimento do propósito de Deus em Sua igreja é a relação de manipulação, domínio e controle que existe entre muitos cristãos. Às vezes, líderes dominam e controlam suas congregações em vez de liderá-las com ouvidos sensíveis à voz do Espírito. Outras, membros enérgicos manipulam seus líderes valendo-se de uma espécie de chantagem espiritual.
Pode ser uma obviedade, mas é sempre bom vê-la grafada.
Oyekan inicia de maneira contundente, afirma, sem rodeios, que “Assenhorar-se de outra pessoa é... uma tentativa de estender nossa esfera de domínio além do que Deus originalmente determinou” (p. 13). Ocorre que o poder corrompe e a tentativa de perpetuá-lo cega os limites do aceitável. É assim que nascem grupos de pessoas cujo líder domina mesmo, se possível em todos os níveis da vida do sujeito, são os chamados “pai”na fé (ou será pau na fé?). “Os dominadores consideram um ato de traição à atividade normal de um indivíduo no sentido de crescer na fé e, conseqüentemente, sair da sua tutela” (p. 18). Esses indivíduos (não há como chamá-los de outro jeito) frequentemente são os mesmos que distorcem 2Co 3.17. Líderes manipuladores, dominadores e controladores não aceitam opiniões, não se compactuam com as palavras liberdade e autonomia, pois isso significa arrazoar discursos e opiniões. Então, “eles só aceitam boas idéias se eles mesmos forem, ou parecerem ser, os autores” (p. 24). Coisa do capeta.
Para minha felicidade (e a de quem ler), Oyekan não esqueceu de dar pinceladas numa idéia que toma conta dos pequenos grupos, tão em voga nos nossos dias. Trata-se da vesga idéia de subestimação das pessoas, ou seja, “para eles [pastores e lideranças], discipular ou “pastorear” é uma forma de confinar pessoas a um relacionamento em que um cristão obedece a outro sem questionar” (p. 48), o que é lamentável em plena era democrática e, mais vergonhoso ainda, quando o próprio Deus dá-nos o livre-arbítrio. Resta-nos, nesses casos, o que, a meu ver, é a síntese desse livro, a saber, “qualquer manipulação da liderança da igreja pelos membros deve ser rejeitada” (p. 33).
Acaba aí a possibilidade de reter-se o que é bom dessa obra. Adiante, o que lemos é uma mistura de assuntos que poderiam ter sido evitados ou melhor explorados. Ou seja, o autor toca de maneira superficial em temas que mereceriam outro momento para a reflexão, talvez outro livro, por exemplo. Então ele faz referência à sexualidade (p. 53), ao lar (p. 63), à música (p. 105) sem nenhum tipo de aprofundamento. Oyekan não esquece de se mostrar ao leitor, de exibir-se a partir dos demônios, ao dizer: “toda vez que ordenamos que eles deixem os oprimidos, eles têm de dobrar os joelhos” (p. 117). É a típica mania de quem se acha superior, a quem não basta expulsar demônios, há que expô-lo ao ridículo, fazer, como vemos em algumas denominações, eles falarem, dizer donde vem e para onde vão. Um exibicionismo desnecessário.
Para finalizar, no último capítulo (pp. 151-156) o autor não resiste à tentação da homogeneização. A começar pelo título, Lista completa sobre o domínio, lemos uma espécie de teste advindos de subtítulos como sintomas de domínio, intimidação, você é dominador ou manipulador? Ora, se Deus é onisciente, onipresente e onipotente e, além disso, multiforme, rasguemos essas páginas ou peçamos desconto no momento da aquisição de um livro assim.
Menos exibicionista é a segunda obra que li. Abuso espiritual: como libertar-se de experiências negativas com a igreja, de Ken Blue[3], tem o mérito de ser mais interessante, de nos cativar mais para a leitura. Possui muito mais relatos do que tentativas de manipular o leitor. A linguagem parece ter mais a ver com o que ouvimos nos templos brasileiros, talvez porque o autor seja norte-americano e nossa teologia, infelizmente, ser uma simples cópia gringa. Mesmo assim podemos reter bastante lições. A primeira vem com uma analogia na qual o fiel, o crente, é como um cliente. Leiamos atentamente:
Certos líderes espirituais exercem gentilmente coerção sobre suas congregações através do uso habilidoso da linguagem da intimidade e da confiança. Essa mesma técnica de manipulação sutil é evidente em restaurantes finos. Os garçons desses restaurantes sáo muito bem treinados no vocabulário e na linguagem corporal da amizade e da familiaridade. Através do uso apropriado de palavras-chave, toques e gestos, o garçom ganha a confiança do freguês. E então, com base na confiança conquistada, manipula o freguês de forma que ele peça o que o restaurante quer vender, e não o que deseja comer. O propósito é extrair do freguês o máximo de dinheiro fazendo-o, ao mesmo tempo, sentir-se querido e cuidado.
Muitos líderes de igreja são habilidosos na linguagem da intimidade e da confiança. Através dela ganham o apoio de seus seguidores e são capazes de levar a igreja como querem. (p. 11)
O bom é que o pastor não se faz de rogado e logo tasca a questão do dinheiro como uma das fontes de abuso/manipulação. Nesse mesmo capítulo, chamado muito bem de Um convite à liberdade, ele propões que suscetíveis ao abuso são “os crentes mais comprometidos”. “O ‘movimento do discipulado’ foi trazendo cada vez mais morte espiritual àqueles que eram espiritualmente vivos” (p.15), afirma citando Berks. Blue une-se a Oyekan mostrando que nem Cristo suportou/aceitou a manipulação farisaica, “por que deveríamos nós deixar por menos?” (p. 16). O autor não deixa passar nem mesmo essa nomenclatura na qual subjaz a perpetuação do poder (bispo, pastor presidente, doutor, reverendo etc), ou seja, o cargo dá visibilidade (p. 18).
Na página 24, Blue, por assim dizermos, ‘pisa na bola’ e deixa implícita a idéia de que pastorear pode ser um grande negócio. Ao contar que um determinado pastor fora acusado publicamente de ter seduzido uma moça e que, em razão disso, fora exonerado do cargo, sem provas, posteriormente sendo comprovadas as mentiras, o autor encerra a questão mostrando que o injustiçado estava “se saindo muito bem vendendo seguros de vida” (p. 24). Lamentável é que não tenha se dado conta de que há uma diferença assustadoramente gritante entre vender seguro de vida e pastorear uma denominação – seja ela qual for. Esta é uma característica da teologia que venho chamando de norte-americanizada: colocar num mesmo pacote a administração de negócios e a administração eclesial. Não deveríamos compactuar com essa idéia; pois é nesse bojo que encontramos obras de escritores cristãos da América (como se eu não fosse do mesmo continente) nas mesmas prateleiras de auto-ajuda, de sucesso empresarial, de como fazer crescer o mercado pós-moderno de indulgências. Não obstante o que acabei de dizer, tem mais ‘luzes’ interessantes na obra que podemos aproveitar.
O que me fez considerar este segundo livro melhor que o primeiro foi a ousadia do autor em dizer muito do que já podíamos inferir e que poucos tiveram a coragem de expor, com algumas minúcias, os podres da instituição. Esta, para manter-se, pouco mede esforço. Seus líderes arranjam palavras, digamos, espiritualizadas para direta ou indiretamente subjugar seus fiéis. “Autoridade espiritual”, “dom de Deus”, “chamada”, “talento especial”, “grande experiência”, “revelação profética” e “ungido do Senhor” são alguns dos epítetos possíveis de se observar no meio evangélico-manipulatório. Para minha surpresa (agradável surpresa, diga-se de passagem) o autor de Abuso espiritual critica Watchman Nee (p. 29) por essa estrutura hierárquica castradora e repressora responsável pelo estrago causado a muita gente. Quantos fiéis receberam penalidades e/ou foram chamados de rebeldes porque ousaram discordar de seus líderes? Lembro-me de já ter sido acusado de insubmisso e rebelde, além disso, havia um pseudolíder que queria, vejam só, ministrar comigo a fim de arrancar, exorcizar o que ele chamou de “espírito de rebelião”. Ainda bem não compareci e nunca comparecerei a uma coisa dessas. Meus demônios, se os tenho, estão em conchavo com os anjos, isto é, se um sair o outro também sai. Não posso deixar de registrar que esse meu ex-líder era leitor voraz de Nee; era Deus no céu e Nee na terra. Realmente, ninguém é perfeito.
Blue não deixa passar em branco essa balela chamada ‘cobertura espiritual’. Incrivelmente, mesmo que Jesus não compartilhe da sua glória com ninguém, há líderes que insistem nessa típica idéia de poder. Assim, o subalterno só pode ir a algum lugar com a (pesudo) benção do líder que tem o poder de cobrir. Nessa mesma idéia, surge o vestir a camiseta. Nalgumas reuniões (cultos) os fiéis são constrangidos a servir sob qualquer custo, sob pena de perderem seus lugares no céu. Ocorre que esses líderes “se assentam na cadeira de Moisés e se posicionam como mediadores entre nós e Deus” (p. 37). Criam estatutos, do tipo faça isso, não faça aquilo (p. 44) e induzem à culpa ao proporem que Deus responde a todas as orações, desde que tenhamos fé e bom desempenho religioso (entendam-se doações, ofertas, dízimos, participação em algum ministério do templo). Acontece, porém, que Deus, soberano que é, pode resolver não atender e isso independentemente de fé. Mas a instituição precisa de regras que a beneficiem, a sustentem.
A genialidade desse sistema é que cada grupo religioso pode projetar seus próprios fardos pesados de modo a satisfazer as suas necessidades. Em um local, o padrão é ofertar dinheiro; em outro, é se revezar como professor de escola dominical; em outro ainda, é participar de comissões. (p.55)
Criam-se fardos, o contrário do que a igreja deveria fazer. Blue acrescenta que
...os pastores têm ensinado a igreja a valorizar as coisas para as quais foram treinados e que eles têm tempo de fazer, como o estudo da Bíblia e a oração. Como são eles mesmos que administram seu tempo, eles podem ir a quantas reuniões de oração quiserem e passar horas estudando as Escrituras. (...)
Existe uma espécie de abuso espiritual que é desumanizante e que na verdade é pior do que o mau uso da lei de Deus. Ele acontece através de apelos que, sem uma definição clara, convidam as pessoas a “viver uma vida de maior profundidade”, a “deixar tudo no altar”, a “render-se”, a “renunciar”e coisas assim. Esse tipo de desafio, quando não é esclarecido nem explicado, nunca dá descanso à nossa consciência. (p. 57/58)
É por essas e outras razões que defendo o labor também aos pastores. Pastores deveriam trabalhar em serviços seculares como uma tentativa de tornar seus sermões mais calcados na realidade. Talvez nossos ouvidos seriam poupados de algumas asneiras. Talvez seríamos menos usados com fins manipulatórios, “sem pressão social e ‘palavras proféticas’” (p. 65). Como diria Larry Crabb, chega de regras. Não mais regras abusivas, que, “para alguns pode ser o uso de terno e [ou] gravata; para outros, jeans e camiseta” (p. 80) e assim por diante.
Tenho a impressão que algumas lideranças acham que não cansam com seus discursos. Pois cansam. E quando isso acontece, o que fazemos? Esse é o tema que toma conta das páginas seguintes de Abuso espiritual. Já na 65 temos uma pista:
Se você não agüenta mais tentar manter seus medos, compulsões e pecados sob controle, a primeira resposta de Jesus não é mais disciplina ou mais memorização das Escrituras, mas sim descanso. Descanso em sua aceitação amorosa e descanso em seu poder.
Deixo claro que o autor não suaviza as críticas às manipulações, aos abusos, simplesmente optei – para não me estender – ir para alguns conselhos que ele, em meio aos desvelamentos, vai nos presenteando. Na sexta parte do livro ele sugere que “se o abuso é menor e ocasional, quem sabe o melhor seria ignorá-los”, mas se, ao contrário, for implacável “e bem-defendido, nós provavelmente precisamos partir.” (p. 99). Em meio aos conselhos, não esquece de algo tão importante quanto denunciar e confrontar o abusador: perdoá-lo (p.102). E a conseqüência posterior ao perdão (ou talvez concomitante) seja afastar-se do lugar, do templo, “para se cuidar” (p. 141), resistindo, inclusive, aos bem-intencionados amigos que nos dão conselhos como se tivessem descoberto a roda. E não sejamos ingênuos, precisamos “de tempo para se recuperar” (p. 141).
Uno-me a Blue para dizer que
...embora não obedeçamos a Deus perfeitamente, Jesus o fez e, aos olhos de Deus, seu sucesso substitui nossa falha. Nós não oramos, amamos, louvamos, perdoamos ou sofremos perfeitamente – mas Jesus, sim, e seu desempenho é creditado a nós. É como se todas as notas dez do boletim dele fossem transferidas para o nosso boletim. (p. 134/135)
O que precisamos é de lideranças que não tenham preocupação com a própria aparência, mas que vivam de maneira simples e franca, que estejam “prontos a aliviar a pressão dos protocolos religiosos quando estes conflitam com as reais necessidades humanas” (p. 146).
Por fim, carecemos de uma teologia da alegria, centrada no amor divino, na graça divina. Sendo sal e luz, trabalhando em prol dessa humanidade com a esperança e os olhos fixos no porvir. Não esquecendo de tornar essa Terra um lugar melhor para se viver, um pedaço do céu.
NOTAS
Ilustração de Peter Kuper para A metamorfose, de Franz Kafka, Conrad Editora do Brasil, 2004.
[1] OYEKAN, Yinka. Manipulação, dominação e controle: desenvolvendo relacionamentos saudáveis. Rio de Janeiro, Danprewan, 2002. Trad. Valeria Lamin Delgado. Título original: Manipulation, domination and control.
[2] 1Tessalonicenses 5.21.
[3] BLUE, Ken. Abuso espiritual: como libertar-se de experiências negativas com a igreja. Trad. Sérgio R. Stancato de Souza. São Paulo: ABU Editora, 2000. Título original: Healing Spiritual Abuse, InterVarsity Press, 1993.