A pretensão piedosa de muitos cristãos de se apoiarem peremptoriamente no que dizem as Escrituras é no mínimo ingênua. Partem do pressuposto impensado de que há uma compreensão absoluta do que está escrito. Que por sua vez funda-se na idéia de que a verdade seja algo pronto, do lado de lá do pensamento, grafado no texto bíblico, apenas à espera que pessoas dela tomem posse.
A compreensão da verdade pensada assim elimina a mais humana das ações: a interpretação. Somos todos seres de interpretação. Uma vaca não interpreta, apenas reage. Uma pessoa não reage apenas, interpreta. Não há possibilidade de haver uma ação humana sem que também aconteça uma interpretação. Uma verdade nunca está do lado de lá pronta para ser possuída. Toda apreensão de idéias é um movimento impreciso e participativo de interpretação.
As páginas da Bíblia não são gavetas que guardam verdades, mas a coleção de narrativas e dissertações que nos convidam ao aprendizado. Nem seus leitores são desengavetadores inertes e neutros de conteúdos prontos. A Bíblia é um livro forjado com múltiplas interpretações. Desde sua escrita original, traduções e versões, o texto é marcado pela confluência de mentes que dela participaram. Juntamos a isso as teologias, tradições e culturas que têm na Bíblia ao menos uma referência de valor e temos um mundo indeterminado de olhares em suas páginas. Porque simplesmente é impossível à mente humana ler sem interpretar e interpretar sem entrar em conflito com outras e diversas interpretações.
Quem quer que afirme apoiar-se absolutamente no que dizem as Escrituras está na verdade dizendo que se apóia em uma tradição de pensamento e do que dela compreende.
O que chamamos de verdade bíblica é uma miragem. Porque não há possibilidade de existir um conteúdo de afirmações atemporal e universal. Por tudo o que já se disse acima. Ao entrar em contato com uma afirmação coloco em movimento todos os preconceitos, tradições, sentimentos, aspirações do meu tempo, questões da minha época, tudo o que em mim participa do modo como interpreto a vida e as pessoas à minha volta. A verdade é relativa a mim, e tudo o que em mim participa do que compreendo. A verdade é necessariamente provisória. Está sempre em construção.
O que chamo de verdadeiro não é um bloco maciço de idéias, mas um corpo inacabado e dinâmico de perspectivas. As verdades humanas nunca são absolutas, são sempre finitas e processuais. Qualquer outra candidata à verdade que se pretenda completa, universal e insuperável pelo tempo fala uma língua incompreensível à mente humana. Nada comunica. Não nos diz respeito. Nem dela podemos fazer referência. Se nos referimos a uma idéia, interpretamos.
Isso significa que sempre que alguém arroga para si a posse de uma verdade absoluta está de fato absolutizando uma versão, a que prefere os interesses de quem está acomodado ao que prevalece em seu mundo. A história não deixa dúvidas sobre os absurdos já cometidos em nome da posse inquestionável da verdade. Mas certamente o maior dos absurdos é a desumanização de todos que entram em contato com tal pretensão. Na medida em que uma idéia é absolutizada, as pessoas são pulverizadas. Quem sai em defesa da posse da verdade perde o outro de si mesmo, ou seja, a sua própria consciência e suas reivindicações por novas respostas. Perde também o outro além de si, ou seja, tudo e todos ao seu redor que divergem em busca do diálogo.
Quem quiser encontrar a Palavra de Deus e não perder a si mesmo e aos outros sob a prepotência de posse absoluta da verdade precisará ir além do que está escrito. Precisará abrir-se para fundir horizontes. De quem escreveu, da tradição e os de seu tempo. Precisará de modéstia para as alteridades envolvidas no texto. Precisará de compromisso com o seu mundo e suas dores. Precisará de imaginação e delicadeza.
Porque a Palavra de Deus não é a Bíblia, mas as suas entrelinhas.
Elienai Cabral Junior
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