Levi Nauter
Qualquer canção de amor
É uma canção de amor
Não faz brotar amor e amantes
Porém, se esta canção
Nos toca o coração
O amor brota melhor e antes
Chico Buarquei
Muito gostei de ouvir a música gospel dos corais e cantores negro-norte-americanos. Na minha estante, alguns nomes contam essa história. Lá, empoeirados, estão Fred Hammond, Yolanda Adams, Kirk Franklin, Bebe e Cece Winams, Mount Moriah Mass Choir, The Brooklyn Tabernacle Choir, entre outros. Nessa época, para mim, cantar bem tinha a ver com a gritaria, com o estardalhaço, com o virtuosismo, com a pedância em repetir um mesmo estribilho. Bons foram aqueles tempos, mas já passaram.
Em seguida tive a fase, digamos, mais branquela. Cristal Lewis e Sandi Patti eram ícones. Outra vez a gritaria reinava, essencialmente com a Patti cantando a enlouquecida Via dolorosa. Era coisa de cortar os pulsos, o que sempre me deu medo. Por sorte não havia armas em casa.
Na seqüência, descobri o worship. Outra febre. Comecei ouvindo o sóbrio Joseph L. Carlington; passei pelo Don Moen e seu Celebrate, não esqueci o Kenoly nem a versão tupiniquim representada pelo Adhemar de Campos. Nessa mesma época, tudo o que se fazia na América e se traduzia por aqui era como se tivesse caído direto do céu.
Depois foi o rock cristão. A sina da cópia foi a mesma já relatada. A linguagem da América era como se fosse a língua dos anjos.
Minha incursão pela literatura cristã percorreu o mesmo caminho. Caminho estúpido. Lembro-me do medo causado por um livro no qual se chamava Mikail Gorbachev de anticristo. Li Steven Lawson, Benny Hinn; Rebecca Brown, entre outras tristes pérolas. Dentre as minhas atuais decepções está o Max Lucado.
Minha vida mudou completamente. Hoje, aos trinta e quatro anos, sou completamente diferente dos que só me conheceram nos anos oitenta ou noventa.
algum mistério tem
É o grão, é o germe, é o gen da chama
E essa canção também
Corrói, como convém,
O coração de quem não ama.
Chico Buarque
De repente eu, que fui tão protegido do mundo, descubro o mundo. Que mundo maravilhoso. Descobri que havia MAIS perto de mim do que a minha vã filosofia, do que a minha pouca visão de mundo. Na medida em que começava a incomodar o norte-americanismo, começava a conhecer o Brasil. Conheci o Grupo Logos, o Milad, o Sinal de Alerta, o Rebanhão (que alguns idiotas insistiam na mensagem subliminar). O Sergio Pimenta, o João Alexandre, o Jorge Camargo. Opa, isso tudo feito por crentes? Estarrecedoramente a resposta era sim. Na escrita, descobri o Paulo Romeiro, o Ricardo Gondim, entre outros ousados.
Adiante na minha criticidade, comecei a desconfiar dos que falavam mal do Renato Russo (não só por sua opção sexual) e do Raul Seixas. Fui ouví-los. Que bênção! Que descoberta ótima.
Passei a desconfiar dos discursos igrejeiros que ouvia.
Casei. Fui para a faculdade. Tornei-me professor. Adquiri casa própria. Aumentei consideravelmente meu leque de leituras e audições musicais. Descobri autores não cristãos: Kafka, Saramago, Dostoiévski, Graciliano, Cony, Lispector, Machado, Cecília, Adélia. Conheci outros tons: Zé Keti, Lupicínio (meu conterrâneo), Elis, Chico (nem precisava dizer), Teresa Cristina; Madonna, M. Jackson, George Michael, Lauryn Hill, Nirvana – entre muitos e muitos outros. Encontrei-me com os escritores do mal e com a música mais underground. Começava a entender por que as instituições religiosas odiavam alguns desses que acabei de citar. Percebi que as amizades – dentro ou fora da instituição – continuavam intocadas. Notei que Deus não me abandonara. Observei que “a língua dos anjos” estava mais para inglês do que espanhol ou português e que, apesar disso, Deus estava firme e imutável em se revelar pra mim via Borges, Márquez, Neruda.
Lendo ou ouvindo os nomes recém citados era-me (e ainda é) perceptível uma nuance do divino, de estética.
Passei a desconfiar ainda mais dos discursos igrejeiros que ouço. O que fazer? Tomar decisões.
Porém ainda é melhor
Sofrer em dó menor
Do que você sofrer calado.
Chico Buarque
Na idade em que estou acho que posso usufruir de alguns luxos. E assumo-os com possíveis riscos que daí advenham – inclusive o de 'torrar' no inferno.
Já passou, já passou
Se isso lhe dá prazer
Me machuquei, sim, supurou
Mas afaguei meu peito
E aliviou
Já falei, já passou
Chico Buarque
Pelo menos por hora, desisti de ficar 'perdendo tempo' discutindo doutrina, visão de igreja, de denominação ou, pior, minha cosmovisão cristã. A razão é que, em geral, quem se envereda nesse caminho quer me convencer de que estou errado, de que tenho de mudar. Portanto, o que penso sobre cristianismo penso e pronto; meu pensamento é o “de experiência feito” - no dizer do mestre educador Paulo Freireii. Continuando com ele, preciso imediatamente dizer que cheguei num ponto da vida em que “a minha fé não me faz cínico, ela me faz indignado”. Mas não uma indignação acrítica.
Desisti de ter pressa. Agora moro numa cidade mais tranqüila, ando mais a pé. Se perco um ônibus espero o próximo ouvindo música ou lendo um livro. A correria só aumenta meus batimentos cardíacos. Pobre, levei treze anos para adquirir a casa própria; só agora serei pai. Cansei de esperar ansiosamente a volta de Cristo. Quero que Ele venha, mas sem pressa. Enquanto isso, fico por aqui, às vezes brincando, às vezes tentando crescer, às vezes tentando melhorar o mundo. Desisti de salvá-lo.
Desisti de ouvir rádio e olhar programas de televisão cristãos. Na verdade, tenho fugido de tudo que tenha a palavra gospel ou cristã. Não quero enriquecer nenhum líder de qualquer coisa em nome da obra de Deus. Tampouco ficar ouvindo receitas de como receber mais de Deus, como ser desesperado por Ele, apaixonado por Ele. Estou de saco cheio de tirar o pé do chão sem cair. Chega dessa palhaçada. Prefiro ler os chatos Lair Ribeiro e Roberto Shinyashiki a ouvir um sermão baseado muito mais neles do que na sempre ótima Bíblia. Lair e Roberto pelo menos sabem fazer o que fazem. Os 'preletores' são como vacas, ficam ruminando para, depois, regurgitar na boca de uma massa preguiçosa.
Desisti de entrar em livrarias evangélicas. Prefiro a Livraria Cultura, a Saraiva. Não é pelo marketing mas, sim, pela possibilidade de comprar uma obra melhor. Entre ouvir o Michael Smith e o Toque no Altar cantando a chata “Faz chover” prefiro as múltiplas versões da linda “Ave Maria no morro”. Tem muito mais a ver com a minha vida, com o meu cheiro, com a terra na qual Deus me permitiu nascer. Ocorre que a Ave Maria no morro não foi feita no norte, mas no sul. Então parece – para alguns – mais feia, menos divina. Pra mim não.
Desisti, por essas e outras, de 'bater o ponto' num templo. Tenho optado por compartilhar da vida com os poucos amigos. Tomar um belo café com minha mulher (de quem não sou dono) e futura mamãe. Dar um passeio pela rua ouvindo o canto dos pássaros. Ouvir um Zeca Baleiro, um Baden Powell, um gaudério como Vitor Ramil ou os conterrâneos César Oliveira e Rogério Melo. Tem sido maravilhoso descobrir As cidades invisíveis, do outro Calvino. Tenho refletido quando canto o Hino Rio-Grandense. E tem sido muito desafiador demonstrar Cristo tanto para os meus alunos da EJA como para os meus vizinhos. Ser sal num lugar onde a igreja tem sido açucar não é fácil. Desvencilhei-me. Basta de instituição.
Desisti de ter medo de Deus. Não é isso que Ele quer de mim. Ele quer que eu seja eu.
Já não tenho medo do inferno (o que é esse mundo muitas vezes?). Também não fico ruborizado quando me dizem que “Deus vai cobrar”. Muito menos sigo os conselhos dos legalistas de plantão, aqueles que se acham maduros demais na fé ou que já alcançaram um certo patamar de santificação espiritual que estão de “corpo fechado”. Ignoro os tapadores de furos, aqueles que se acham a espuma das brechas (abriu a brecha?).
Deixem-me viver em paz e escrever o que bem quiser.
Ah, estou bem. Amo a mulher que tenho e a criança que estará conosco lá pelo final de abril/2009. E porque sou humano sou imperfeito, tenho relacionamentos a melhorar; sou cheio de defeitos. Sou chato, tenho um jeito ranzinza.
Mas tenho uma certeza que me conforta: não há nada que eu possa fazer para que Deus me ame mais, ou menos. Essa é a razão de eu estar vivo. Ele me ama!!!
Recolha o seu sorriso
Meu amor, sua flor
Nem gaste o seu perfume
Por favor
Que esse filme
Já passou
Chico Buarque
iAs citações do Chico Buarque são das maravilhosas músicas “Qualquer canção” e “Já passou”.
iiFREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. Ana Maria Araújo Freire (org). São Paulo: Editora UNESP, 2001.
11 comentários:
Descrição franca sobre minha opinião do texto :
(Apaixonado em demasia por si mesmo (cultura, Leitura, Formação acadêmica etc.) “extremamente magoado por uma velha paixão, “a religião” Isto revela que pela religião nunca conheceu a Deus e hoje pela magoa dela, nega-se mais uma vez a conhecê-lo”). Canso de ver pela NET pessoas com discurso egocêntrico e humanista, que não fazem uma vírgula por ninguém e em sua descrição se julgam demasiado justos.
(Apaixonado em demasia por si mesmo (cultura, Leitura, Formação acadêmica etc.) “extremamente magoado por uma velha paixão, “a religião” Isto revela que pela religião nunca conheceu a Deus e hoje pela magoa dela, nega-se mais uma vez a conhecê-lo”). Canso de ver pela NET pessoas com discurso egocêntrico e humanista, que não fazem uma vírgula por ninguém e em sua descrição se julgam demasiado justos.
Descrição franca sobre minha opinião do texto
Puta q pariu, Levi... este é o "em off" mais "on" que já vi!
Deus te abençoe por teres a simplicidade para desistir das fórmulas e a coragem para amá-Lo de peito aberto e sem frescura. A isso chamo de intimidade com Deus.
Um abração apertado em vocês!
Com amor,
Camila.
Grande Levi ..
Sempre com seu jeito unico e indiscutível de ser. Fico até com medo de escrever ao amigo, pois és uma pessoa que domina as palavras, os versos e as rimas. Mas me arrisco a dizer, que apesar de todas as coisas que escreves tem um chama acesso neste coração, que nunca se aparagará. Chama esta que faz você lembrar dos momentos que sozinho ou acompanhado, teve momentos bons ou ruins dentro de um templo evangelico. Mas nunca vai se esquecer daquilo que lhe foi ensinado, seus valores nunca mudarão,independente de seu gosto musical. Tenho saudades do amigo. Amigo este que me iniciou nas aulas de bateria (rsrs). Bem que tentou mas nunca aprendi. Grande abraço. Samuca - Niteroi. Manda um abraço para Familia.
Obrigado Samuel e Camila pelos comentários. Vocês é que são cristãos. Não porque concordam comigo, mas porque discordando nalgumas coisas e concordando noutras prosseguimos para o nosso alvo.
Louvo a Deus por ser humano e, às vezes, humanista. É melhor que ser porta. Quem me julga com tanta firmeza terá a mesma medida naquele dia (quase apelei para a TEOLOGIA DO MEDO).
Abraços,
Levi Nauter
O mais legal da opinião da Natália (liaperigosa) é q ela sabe exatamente o jeito certo, preciso, único e, preferencialmente, idêntico ao dela, para se conhecer a Deus. Se não é do jeitinho q rola na igreja dela, não tá valendo, é religião e não "vida com Deus", pois eles é q têm a revelação e a visão do Senhor. Me lembra tanto uma parábola q Jesus contou a respeito de 2 irmãos.
Ah, e não dá pra esquecer tbm q ela monitora cada passo do teu dia, Levi, pois sabe, com clareza de sons e imagens, q tu não faz "nem uma vírgula por ninguém". Provavelmente ela é multimilionária e dona de algum satélite hiper-poderoso.
Pra terminar com chave de ouro, a frasezinha do hipócrita: "e em sua descrição se julgam demasiado justos". Filha, a única justa aqui é vc! Vc q tem a visão, a revelação, q sabe tudo de Deus, não é nada egocêntrica e é a humildade em pessoa! Huahuahauahuahauhauhaua
Continuo achando bom que terminaram com a fogueira. Só há a do (P)Edir Macedo.
Ainda bem que há uma penca de gente trilhões de vezes mais importante que eu, cuja fala repercute no mundo todo, pensando o que tenho pensado.
Também é ótimo estar casado com a Lu, uma mulher que conhece muitas das minhas mazelas e me deixa emocionado quando diz "eu te amo". A Lu é a revelação da misericórdia divina na minha vida. E isso me basta, somando alguns poucos amigos.
O fundamentalista é Joselito, não sabe brincar. Deus quer que a gente brinque para ser sério.
Valeu Camila.
Abraços ao Guto e à Chloe.
LNM
bom ouví-lo citar sérgio pimenta!! fiz parte da 42ª equipe de vencedores por Cristo... ele ainda estava lá com a gente!! pois é... faz tempo sim!!! rsrsrsr!
bjo, rapaz!
PS: seu texto tá ótimo. tbém leio kafka e os demais... "são D+"! rsrsrs!
Quando li teu texto me senti confortada por ver alguém escrever de forma tão brilhante, apaixonada e cristã o que muitos sentem e não tem nem coragem, nem voz para o dizer. Sei que não tenho a ousadia que tens e por isso é acalentador ler-te e conhecer-te em tua vida com Deus. Ensinas mais do que gramática, meu cunhado. Ensinas vida legítima e sem hipocresia.
Azar de quem não pára para refletir em tuas palavras e já sai jogando as pedras.
para mim és um Nietzsche.
Abração e manda notícias da Lu.
Minha felicidade tem sido indizível. Os comentários aqui postados me incentivam a continuar escrevendo - cada vez com mais responsabilidade, rigorosidade e seriedade. Mas também via e-mail recebo observações. Transcrevo duas a seguir:
Olá, Levi.
Não podia deixar de lhe parabenizar por seu texto "em off".
Tenho acompanhado seus textos e quero lhe incentivar a continuar. Em geral, faço minhas as suas palavras.
Um abraço e tudo de bom desse seu leitor.
Ricardo Quadros Gouvêa
para quem não o conhece, aí vai um resumo:
fez cursos selecionados de graduação na Universidade de São Paulo (1986); bacharelado em teologia - Seminario Presbiteriano do Norte (1991); Licenciatura em Letras (português/inglês) pela Faculdade Olindense de Formação de Professores (1992); fez cursos de mestrado em Filosofia na Villanova University; mestrado em Teologia Sistematica no Westminster Theological Seminary (1994) e doutorado em Estudos Históricos e Teológicos no Westminster Theological Seminary (1998); atualmente está regularmente matriculado no programa de doutorado em Filosofia na FFLCH - Universidade de São Paulo . Atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Juiz de Fora, é professor dos programas de pós-graduação do Seminario Teologico Servo de Cristo, e é professor adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie, atuando no programa de pós-graduação do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas, onde faz pesquisa na área de valores organizacionais e ministra cursos na área de epistemologia e filosofia da ciência. Tem experiência nas áreas de Filosofia, ciências da religião, teologia e letras, com ênfase em História da Filosofia e história da teologia, atuando principalmente nos seguintes temas: kierkegaard, existencialismo, epistemologia, filosofia da ciência, filosofia da religião, história do cristianismo, teologia contemporânea e história das religiões. (Currículo Lattes)
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Caro Levi:
O Dostoiévski era super cristão, só que ortodoxo. Não sei se todos os autores que citaste não eram cristãos ou pelo menos agnósticos. Poucos eram declaradamente ateus. Até Voltaire dizia que se Deus não existisse, precisaria ser inventado pelo freio que a idéia de religião coloca nas paixões humanas.
Quando leio o teu texto tenho a impressão que estou recebendo notícias de outro planeta. Cristianismo para mim nunca foi o que foi para ti. Acho que porque nunca fui obrigada a acreditar e nunca usaram o santo nome em vão comigo tenho uma idéia muito benigna de Deus.
Patrícia Degani
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Sou um abençoado pela misericórdia divina.
Levi Nauter
Bela reflexão amigo.
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